Dukkha - Insatisfatoriedade
Dukkha é uma palavra em Páli que não pode ser traduzida facilmente pelas nossas línguas modernas. Não significa 'apenas' sofrimento, mas significa a Insatisfação inerente em tudo aquilo que é cíclico, que não é estático, mas instável. Em tudo aquilo que não é seguro, mas incerto e imprevisível.
Uma das 3 Características que Buda atribuiu ao nosso mundo foi Dukkha, que aparece muito em seus ensinamentos, especialmente nas 4 Nobres Verdades. Aliás, é na 1ª Verdade que o significado dessa palavra é muito distorcido, quando ela é traduzida para sofrimento, formando a famosa frase que faz com que muitos rotulem o Budismo como pessimista: Vida é Sofrimento.
Na verdade, Dukkha significa muito mais do que isso e, portanto, a 1ª Nobre Verdade é muito mais significativa e realista, não pessimista. Vamos entender esse conceito.
Originalmente, em seu sentido mais antigo que temos notícia, Dukkha significava "Eixo Descentrado", ou seja, representava um eixo que estava fora de seu centro. Isso era muito usado para exprimir defeito nas rodas de carroças, o transporte mais sofisticado na época do Buda. Quando o eixo da roda de uma carroça não estava bem fixado no centro, a roda não girava com perfeição e dessa forma o transporte era desagradável porque ficava oscilando muito, balançando, subindo e descendo - isso devia causar náuseas. Veja uma análise de Dukkha como Duhkha, em que a última, onde há "h" em vez de "k", é a versão em sânscrito, sendo que a que estamos usando é em páli:
"Talvez seja interessante observar a etimologia das palavras Sukha (prazer, conforto, satisfação) e Duhkha (dor, desconforto, insatisfação). Os arianos antigos que trouxeram a língua sânscrita para a Índia eram nômades, pessoas com criação de gado que vinham em veículos de cavalos ou bois. Su e du são prefixos que significam bom e ruim, respectivamente. A partícula "kha", [...] em sânscrito significava eixo, particularmente o buraco que servia de eixo nos veículos dos arianos. Assim, Sukha significava bom eixo, e Duhkha significava mal eixo, trazendo desconforto." - Sargeant, Winthrop (2009), The Bhagavad Gita.
Esse é o significado original de Dukkha, na linguagem em sânscrito. Em páli, era usada basicamente para retratar coisas muito desconfortáveis e desagradáveis, que não eram suportáveis e, portanto, incomodavam assim como náuseas num transporte que oscila muito. Isso porque muitas situações na vida oscilam como uma roda cujo eixo não está centrado, subindo e descendo.
Essa é a relação de Dukkha com as nossas vidas que Buda estabeleceu. Nossas vidas são exatamente assim: instáveis, cheias de altos e baixos. Ora estamos felizes, ora infelizes. Um minuto calmos, no próximo irritados. Num dia sorridentes, no próximo estamos chorando - isso que o Buda quis dizer ao afirmar que a Vida é Dukkha. A melhor tradução para Dukkha provavelmente é Cíclico, tudo na vida se encaixa em um ciclo em que há a parte alta e há a parte baixa do círculo, mas não há como ficar apenas em uma parte porque o ciclo continua girando: não podemos ficar só felizes, ou só sorridentes, a natureza da mente é girar, por ser cíclica, ela gira como um eixo descentrado, porque nada é estático.
"Quando você experimenta felicidade, você acha que haverá somente felicidade. Em qualquer momento em que haja sofrimento, você acha que haverá somente sofrimento. Você não vê que onde quer que haja o grande, lá haverá o pequeno; onde quer que haja o pequeno, lá haverá o grande. Você não vê dessa forma. Você vê somente um lado e assim isso nunca termina. Há dois lados para tudo: você deve ver ambos. Então, quando felicidade nascer, você não ficará perdido; quando sofrimento nascer, você não ficará perdido. Quando felicidade nascer, você não se esquecerá do sofrimento, porque você viu que eles são interdependentes." - Ajahn Chah em "The Teachings of Ajahn Chah".
Onde há uma coisa, tenha certeza de que nela já há a outra. Isso é inevitável: faz parte da natureza do Samsara, desse mundo em que vivemos. Se você está feliz agora, lembre-se, o sofrimento logo virá. Se você está em depressão, saiba que isso não vai durar. Então, sempre quando você estiver em contato com algo, o outro oposto já está intrínseco lá - se você está feliz, pode-se dizer que você está de cara não só com a felicidade, mas também com o sofrimento, porque um não existe sem o outro. Você consegue imaginar como existiria o grande se não existissem coisas pequenas? Isso só se tudo fosse do mesmo tamanho! Logo, nossas linguagens mundanas separam um adjetivo do seu oposto, mas está tudo integrado. Se vemos o saboroso, há o aversivo no saboroso, porque um não existe sem o outro: é necessário que haja essa instabilidade para que, através das comparações, construamos os antônimos em nossa Língua.
O problema é que vemos as coisas de forma dual, como se pudéssemos manter um oposto no agora e evitar o outro para sempre, mas não podemos, está tudo integrado - quando há um, sempre há o outro. Como nada é eterno, uma hora a instabilidade faz um sentimento variar ao outro.
Por isso Buda disse que Vida é Dukkha, Doença, Velhice, Morte - tudo isso é Dukkha. Isso porque não são estáticos, eles variarão até o seu outro extremo. Com a vida vem a morte, com a morte, um novo nascimento, com a saúde, vem a doença, com a juventude, a velhice, e por aí vai. Sempre quando há um, o outro já está lá. E, se tentamos controlar o quanto tempo uma parte da 'roda da carroça' tocará o chão, iremos sofrer, porque não estaremos contentes com o fluir das coisas do universo.
"Dukkha pode ser explicado de forma simples a partir do fato de que, quando temos alegrias, elas são sempre, simultaneamente, sementes de sofrimento. Dizemos que esta é uma experiência cíclica — é como uma roda girando entre as polaridades de estar bem e estar mal. Gostaríamos de encontrar o freio quando estamos na região de felicidade, e gostaríamos de acelerar quando estamos tristes. Às vezes achamos que encontramos um controle de velocidade desse tipo, mas logo surgem problemas nessa tentativa de controle." - retirado de cebb.org.br, de Lama Padma Santem.
Vamos girar e escolher com qual lado queremos ficar? Melhor não, o ciclo já gira por si mesmo. Se você quiser interferir, só ficará insatisfeito. Desapegue-se: a vida é assim!
Portanto, em vez de traduzir Dukkha como sofrimento, melhor é traduzi-lo como Insatisfatoriedade. Como todas as coisas estão sempre mudando, o que entra em harmonia com outra característica, Impermanência, nunca poderemos estar certos de como será o presente. Podemos desejar (esse desejo, como disse Buda, sempre problemático) estarmos calmos agora, mas a mente, por sua natureza, é Dukkha, ou seja, é cíclica. Como ela não satisfaz nossos desejos por algo duradouro, ela é Insatisfatória.
Então, se tudo é Dukkha, tudo é Insatisfatório, porque nada dura, tudo consiste em um ciclo girando. Não só infelicidade, mas felicidade também é algo insatisfatório. Se você quiser se manter infeliz, você ficará insatisfeito porque você não vai conseguir - nesse Samsara nada é estático. Tanto felicidade como infelicidade são Dukkha, insatisfatórios.
Precisamos perceber como nos apegarmos a isso é pura tolice - não adianta tentar controlar demais. Nós pensamos que queremos apenas a Felicidade, mas você nunca saberia o que é Felicidade se não existisse Sofrimento. O problema é que um não existe sem o outro, ambos estão integrados e não podem ser separados. E, como nada na vida é um quadrado, você não pode manter sempre um sentimento ou sensação consigo, porque nosso universo não é estático - aliás, não dá para imaginar como ele o seria dessa forma. Imagine se não houvesse movimento, distância, tudo fosse do mesmo tamanho, estranho não?
Todavia, importante frisar que isso não significa que não precisamos praticar. Não é porque a vida é incontrolável em certos aspectos que podemos dizer "Certo! Então vou me desapegar e que a minha mente me leve para onde ela quiser.", esse não é o pensamento correto. Precisamos fazer o esforço para nos desapegarmos e vamos perceber que podem nascer ambos felicidade e sofrimento que estaremos em paz, tranquilos e equânimes - esse é o objetivo. Não pense que quando dizemos para se desapegar, você pode seguir suas tendências. Pelo contrário! Quando você se deixa ser controlado pela sua mente, ela vai se apegando a todo esse monte de coisas insatisfatórias, mas você precisa coloca-la no lugar constantemente. Portanto, tome cuidado para não interpretar esse ensinamento erroneamente, usando-o como uma desculpa para não praticar.
Por fim, algumas palavras que expressam a ideia profunda de Dukkha: insatisfatoriedade, desconforto, desagradável, ansiedade, angústia, instabilidade, incerteza, insegurança, descontentamento, mal-estar, imprevisibilidade, sofrimento - entendeu agora o significado desse último na palavra Dukkha e, por fim, na 1ª Nobre Verdade? Se tiver dúvidas, pergunte!
Assim, Dukkha é uma natureza intrínseca à Existência. Existência é Dukkha significa dizer que ela é Insatisfatória por ser cíclica, ela oscila porque é sempre instável. Então, se você ler dukkha traduzido como sofrimento, veja o significado de sofrimento um pouco além do convencional. O sofrimento de Dukkha se deve a tudo que gira como uma roda de uma carroça cujo eixo não está bem centrado.