Não elogie o Budismo - diga que ele pode estar errado! Quem sabe?
Uma das melhores formas de combater seus desejos e apegos é fazer exatamente o oposto do que eles tentam induzir sua mente a realizar. Portanto, se você tem problemas em querer elogiar demais o Budismo, considere a possibilidade dele estar errado!
Desde que adquiri um conhecimento razoável do Budismo, tive problemas com um certo "orgulho" acerca da grandeza do Dhamma do Buddha, e essa kilesa (traduzido do páli: contaminação) se manifestou predominantemente sobre minha pobre mãe, que permanece católica. Com intenções inicialmente hábeis, eu sempre quis que ela se dispusesse a conhecer um pouco mais o Budismo para que ela pudesse entender um caminho admirável que conduzia à paz no aqui e agora, só que essa "intenção hábil" costumava estar permeada por presunção.
Isso porque eu tentei convencê-la a se interessar pelo Budismo usando atitudes muito tolas, arrogantes e orgulhosas, tentando apontar todos os elogios do Budismo e até mesmo coisas que o Budismo possuiria e o Cristianismo não. Mas, com a prática e com o consequente incremento de sati, Atenção Plena, eu comecei a perceber como eu estava praticando Linguagem Incorreta e, assim, comecei a tomar mais cuidado com esses atos feitos através do corpo, palavras através da linguagem e pensamentos através da mente. De fato essas atitudes reduziram bastante, mas recentemente me deixei submeter por esse tipo de contaminação mais uma vez!
Já não me lembro bem como cheguei a dizer aquilo - não surpreende, porque é justamente quando não estamos atentos (ou seja, quando a faculdade de sempre se lembrar da Atenção Plena está frágil) que nos deixamos ser escravizados pelas nossas kilesas! Só me lembro que, subitamente, eu comentei: "Sabia que a habilidade de andar sobre as águas já estava indicada nas escrituras budistas antes da Bíblia?". Instantes depois "eu" percebi aquilo, a Atenção Plena se reestabeleceu e "eu" me questionei: "Qual foi a minha intenção ao dizer isso? Que valor tem isso?", mas a resposta para mim já estava óbvia - eu estava sendo arrogante, tentando mostrar que eu seguia uma religião superior. Ela me questionou se eu acreditava nesse poder, e eu respondi "Quem sabe", percebendo que deveria parar de falar. Depois disso eu me calei e, com o fim do comercial que estávamos assistindo na TV, nos voltamos a assistir o filme em curso e o debate cessou ali mesmo.
Depois, eu me alertei devidamente que aquele ato era fabricado, impermanente, arrogante e fútil; indigno de pessoas interessadas em adentrar ao caminho dos Ariyas (nobres que alcançaram um dos 4 estágios da Iluminação) e que me traria mais sofrimento do que o pequeno prazer de se achar melhor - digo isso para incentivá-los a praticarem da mesma forma, pois, através disso, desenvolvemos hiri-otappa: hiri significa vergonha de cometer transgressões (isso não é desenvolver remorso para si mesmo, não é questionar a si como indivíduo, mas o seu ato: isso é digno de pessoas dedicadas à sabedoria?) e otappa significa temor de cometer transgressões (percebendo o sofrimento nessas coisas, nos alertamos a evita-las pelo nosso próprio bem e pelo bem dos outros); com isso, Sati é reforçada e educada a saber a que coisas estar alerta, afinal, naquele momento ela não esteve alerta! rs
Com a advertência devidamente realizada, eu pensei que maneira poderia ser mais hábil para que eu lidasse com aquela situação. Ao me lembrar que ela me perguntara se eu acreditava nesse tipo de poder, eu percebi que poderia ter dito que talvez tudo isso fosse mentira, e que era possível que o Budismo estivesse errado nesse aspecto, por que não? Afinal, não vi ninguém andando sobre as águas por mim mesmo! Foram apenas minhas contaminações querendo usar isso para ganhos fúteis, uma vez que declarações como essas não devem ser fundamentadas em filosofias ou fés vagas, mas no conhecimento pessoal (se é que devem ser declaradas!); como mostrado no seguinte trecho em que um monge questiona ao outro se ele tem conhecimento empírico, e não apenas baseado em especulações, acerca da Origem Dependente:
[Venerável Pavittha]: “Musila, meu amigo, colocando de lado a fé, colocando de lado a preferência, colocando de lado a tradição, colocando de lado a razão, colocando de lado as ideias, você verdadeiramente possui conhecimento pessoal assim: ‘Do nascimento como condição, o envelhecimento e morte [surge]’?” - (retirado de Kosambi Sutta - acessoaoinsight)
Portanto, dizer que o Budismo podia estar errado teria sido uma maneira efetiva de contra-atacar minhas kilesas, reduzir o meu orgulho e ir contra meus apegos - se você quer exibir o Budismo com alguém com orgulho, contra-ataque e diga: "Se bem que o Budismo pode ter muitas coisas erradas... Talvez eu esteja seguindo uma religião cheia de defeitos, quem sabe?!". No Anusota Sutta, Buddha alertou que não devemos ir com a correnteza! O que ele quis dizer com isso? Que não devemos ser indulgentes com os nossos desejos, caso contrário você perderá a sua vida seguindo cegamente seus apegos por coisas impermanentes e colherá arrependimento lá no final, vendo que todo o prazer que você buscou foram coisas que surgiram e acabaram que você não levará depois da morte. Que valor real há nisso? É por isso que a Contemplação da Morte é um meio maravilhoso de aguçar Sati e estimular a prática de Sila (Virtude)!
Além disso, que valor eu estava passando a minha mãe? Eu gostaria que ela conhecesse o Budismo, porque tenho visto por mim mesmo que ele é um método de prática que conduz à paz e à libertação do sofrimento, mas se ela não quer conhecer, não vai conseguir praticar, não é? Tentar induzi-la a isso é agir infectado por cobiça e várias outras contaminações que apenas nos prendem ao Samsara. Portanto, aquela bronca foi de grande valor, tanto por mim quanto por ela, porque a Linguagem que usei com minha mãe foi totalmente incorreta - não havia intenção benéfica ali.
Assim sendo, espero que esse pequeno momento recente sirva de estímulo a você. Aliás, permita-me compartilhar mais uma coisa: no momento em que decidi escrever esse post, um pensamento surgiu: "Todos verão como eu pratico corretamente!", mas dessa vez Sati já estava presente e percebeu essa contaminação logo antes dela surgir. Não é engraçado? Essas kilesas não nos dão um minuto de folga! Mas não, isso não é engraçado - isso é perigoso! Contemplem isso para terem o temor de serem orgulhosos e poderem se libertar do sofrimento.
Eu poderia ter utilizado a filosofia de ir contra a correnteza e não fazer esse post, indo contra o meu apego arrogante supracitado, mas eu preferi dar uma boa bronca em mim até que eu estivesse seguro de fazer esse post sem intenções inábeis, visto que o vejo como um bom exemplo de como devemos ter cuidado com nossas mentes no dia a dia, como devemos agir e nos interrogarmos quando Sati perceber o erro, que contemplações realizar e quais qualidades desenvolver para nos libertarmos do sofrimento. Espero que esse exemplo singelo possa ser esclarecedor para muitos... Mas, se você achar que ainda há algum erro nesse post ou na minha prática, me avise! Não vou ficar falando que esse post é maravilhoso como o Budismo - ele pode estar errado! Quem sabe? rs
Não devemos nos envolver em rixas e debates a fim de defender nossos conhecimentos com uma mente permeada por cobiça e arrogância, porque isso é uma intenção inábil que não agrega qualidades benéficas a ninguém. Podemos falar sobre o Budismo para outras pessoas, mas somente com intenções hábeis. Buda nos disse que não devemos nos alegrar se o Budismo for elogiado, nem devemos nos entristecer se ele for criticado. Apenas devemos dizer o que o Budismo é e não é com intenções benéficas.
[Buda]: "Bhikkhus, se alguém falar difamando o Buda, o Dhamma ou a Sangha, vocês não deveriam ficar com raiva, ressentimento ou perturbação por conta disso. Se vocês ficarem com raiva ou descontentes, isso será apenas um obstáculo para vocês. Pois se outros difamam o Buda, o Dhamma ou a Sangha e vocês ficarem com raiva ou descontentes, será possível que vocês saibam se aquilo que eles dizem é correto ou não?
[Bhikkhus]: Não, venerável senhor.
[Buda]: Se alguém difamar o Buda, o Dhamma ou a Sangha, então vocês devem explicar aquilo que é incorreto como incorreto, dizendo: ‘Isso é incorreto, isso é falso, esse não é o nosso modo, esse tipo de coisa não é encontrada no nosso meio’.
"Mas, bhikkhus, se alguém falar elogiando o Buda, o Dhamma, ou a Sangha, vocês não deveriam ficar satisfeitos, contentes ou exultantes por conta disso. Se vocês ficarem satisfeitos, contentes ou exultantes com o elogio, isso será apenas um obstáculo para vocês. Se alguém elogiar o Buda, o Dhamma, ou a Sangha, vocês devem reconhecer a verdade daquilo que é verdadeiro, dizendo: ‘Isso é correto, isso é verdadeiro, esse é o nosso modo, esse tipo de coisa é encontrada no nosso meio’." - (retirado de Brahmajala Sutta - acessoaoinsight)
Se você quer ensinar um caminho valioso a alguém, só ensine se a pessoa estiver com mente aberta e se você estiver com intenções benéficas, isto é, não ensine com orgulho, pensando "Eu pratico um caminho maior". Só de pensar isso você já não está praticando o caminho que conduz à purificação. Apenas ensine com o pensamento "Esse ensinamento pode ser benéfico a outra pessoa. Devo oferecer a ela com compaixão, sem intenções inábeis por de trás que busquem fama ou reputação". E lembre-se: ensine somente se o seu interlocutor estiver com mente aberta, caso contrário, fique em silêncio e sempre aponte o caminho da forma mais modesta e honesta: através do seu próprio exemplo. Se surgir debates metafísicos como o que eu comecei a fazer, simplesmente diga: "Mas o Budismo pode estar errado! Quem sabe?".
Por fim, encerro compartilhando um Sutta valioso:
Algumas pessoas falam
com segundas intenções,
outras falam
com a convicção de que estão certas.
Mas um sábio não participa
de uma disputa que tenha surgido.
Por conseguinte ele está livre
de qualquer obstrução.
Agora, como pode alguém
impelido pelo desejo,
guiado pelas suas inclinações,
entrincheirado nas suas preferências,
abandonar as ideias às quais se apega?
Elaborando as suas próprias conclusões,
ele disputa de acordo com aquilo que conhece.
Alguém que se vanglorie, sem ser perguntado,
das suas práticas, virtudes,
dizem os mestres,
ser alguém ignóbil.
Mas um bhikkhu em paz,
totalmente livre,
que não se vangloria das suas virtudes, declarando
- “assim é como sou” -
dizem os mestres,
ser alguém nobre.
Ele não tem arrogância
com relação ao mundo.
Aquele cujas idéias são
fabricadas, condicionadas, altamente apreciadas,
mas que não são puras,
ideias nas quais ele percebe o ganho pessoal,
irá experimentar uma paz que é instável.
É difícil superar ideias pré-concebidas
que são formuladas ao julgar outras doutrinas.
Por isso, em vista dessas mesmas idéias,
Ao aceitar uma ele rejeita as outras.
Agora, aquele que é purificado
não tem ideias pré-concebidas
sobre o devir
ou não -
em qualquer lugar.
Tendo abandonado a presunção1 e a delusão,
de que modo ele se estabeleceria? 2Ele não se estabelece.
Aquele que tem apego
se mete em disputas.
Mas como – em conexão com que -
pode alguem desapegado
ser caracterizado?
Ele não tem nada
apegado ou rejeitado,
ele abandonou todas idéias
exatamente aqui - todas sem exceção.
(retirado de Dutthatthaka Sutta - acessoaoinsight)
1 Nota do acessoaoinsight: Nd.I: a palavra “presunção” pode ser entendida de várias formas, sendo que a mais completa é uma lista com nove tipos de presunção: (1) considerar as pessoas melhores que si mesmo como: piores que si mesmo, iguais a si mesmo, ou melhores que si mesmo; (2) considerar as pessoas em pé de igualdade com si mesmo como: piores que si mesmo, iguais a si mesmo, ou melhores que si mesmo; (3) considerar as pessoas piores que si mesmo como: piores que si mesmo, iguais a si mesmo, ou melhores que si mesmo. Em outras palavras, se a idéia é verdadeira ou não não é o ponto em questão mas sim a tendência de comparar a si mesmo com os outros. Nota do Fórum Sangha Online: acrescento que um Arahant não se compara como melhor, igual ou pior que ninguém, mas reconhece que cada pessoa é única. Além disso, a comparação que estimulei para o desenvolvimento de "vergonha de cometer transgressões" deve ser devidamente realizada para não se dar como uma "comparação com outras pessoas" - isso é comparar seus atos àqueles que trazem benefícios, portanto, essa comparação que estimulei não tem como finalidade fortalecer grilhões e contaminações, mas libertar do sofrimento; o método não é comparar pessoas, fortalecendo a ideia de um Eu ou Ego, mas comparar atitudes, fortalecendo práticas virtuosas.
2 "De que modo ele se estabeleceria" quer dizer "de que modo ele criaria um suporte para um novo renascimento?" Se não há mais apego, não há mais a causa pela qual o renascimento possa ocorrer - dessa forma ele não renasce mais, isto é, ele não se estabelece mais.