- Buscador escreveu:
- O que pensar das ocorrências onde uma pessoa precisa morrer em nome de um princípio? O que pensar da aceitação da morte ou mesmo da tortura como um processo para o desapego?
Morrer pelo Dharma é uma coisa meio delicada para contemplar... na verdade, será muito inspiradora para alguns, mas absurdo para outros... Justamente por essa divergência de opiniões acho meio complicado falar sobre isso
O fato é que... à medida que alguém compreende, realmente compreende os ensinamentos do Buddha do fundo do coração, não há nenhum problema em morrer. Porque veja, enquanto alguém não compreende um caminho espiritual, para essa pessoa o que é que tem valor? Posses materiais? Laços afetivos? Amigos? Profissão? Os diplomas e certificados? Os elogios? O currículo? Os prazeres sensuais? As férias? As viagens? Os hobbies? Então pergunta-se - qual o valor dessas coisas na morte?
O que alguns praticantes vão percebendo à medida que trilham um caminho espiritual é que por muito tempo nós ficamos depositando nossa felicidade nas coisas erradas. Nossa felicidade não está nas pessoas, em eventos, em lugares ou em situações. As pessoas mudam, os eventos acabam, os lugares envelhecem, as situações oscilam... Nada disso é confiável. Nós mesmos mudamos, acabamos, envelhecemos e oscilamos. Mesmo nossas personalidades, por meio das quais definimos nossas identidades, também mudam. Por isso o Buddha dizia que tudo é vazio, ou não-eu, ou desprovido de um proprietário. Nada é do nosso controle. Todos os fenômenos são apenas processos transitórios, sempre mudando.
Então, quando compreendemos os ensinamentos do Buddha, vemos que o que realmente importa são as intenções que cultivamos no coração. Aí vemos que o que tem valor não são nossas famílias, mas como nos relacionamos com nossas famílias. Inclusive na morte!
O que importa não são nossos diplomas - mas como e para que os utilizamos?
O que importa não são as viagens - mas por que e como as realizamos?
O que importa não é a aparência dos nossos corpos - mas com qual finalidade os movimentamos?
A perspectiva é diferente. O que importa não são nossos gostos e desgostos - o que importa é, o que é benéfico e generoso? Então, paramos de evitar fazer o que não gostamos, para evitar fazer o que é prejudicial. Paramos de fazer só o que gostamos, para fazer o que é benéfico. Isso é uma forma diferente de viver, e não é fácil de pratica isso... É algo que vamos reconhecendo aos poucos.
Mas à medida que realizamos isso no coração, vemos que não há problemas em morrer. O que perdemos na morte é secundário, e se entendemos isso, não há porque se afligir. O que levamos na morte é só nosso karma, são só as nossas intenções. Se isso for o que estivermos valorizando, não há o que temer.
Num certo nível, praticar os ensinamentos do Buddha é estar pronto para morrer. Se nós queremos praticar esse caminho que implica em cultivar uma paz interior, independente das condições externas, então temos que ser como Ajahn Chah: QUALQUER COISA é boa o suficiente para cultivar as intenções hábeis. Qualquer coisa. Quando alguma coisa não for boa o suficiente, é nesse momento que caímos na armadilha do desejo, do apego, da aversão. Lá vamos nós nos apegando a experiências e preferências impermanentes de novo. Mas quando somos capazes de reconhecer que qualquer coisa é boa o suficiente para ser uma boa pessoa, então não importa o que aconteça, sempre estaremos prontos para fazer aquilo que realmente importa, que é cultivar a mente. Faça frio ou calor, ouçamos críticas ou elogios, estejamos ricos ou pobres, em situações agradáveis ou desagradáveis, com pessoas simpáticas ou difíceis, o que realmente terá valor na vida e na morte serão as nossas atitudes nesses momentos.
Se entendemos isso do fundo do coração... então, o que é a morte?
A morte também é boa o suficiente para ser uma boa pessoa?
Mesmo a tortura seria boa o suficiente?
Como os monges tibetanos saíram extasiados em meditação dos campos de tortura, onde eram forçados a trabalhar em condiçoes degradantes?
É como diz Jetsunma Tenzin Palmo, monja tibetana: é nas condições difíceis que realmente testamos nosso compromisso com o caminho. Porque é nas dificuldades que vemos quais são verdadeiramente nossas prioridades: nossas preferências ou os valores espirituais?
E é aí que está a guerra entre ignorância e sabedoria. Enquanto somos cegados pelos nossos gostos e desgostos, não enxergamos que experiências e preferências mudam... ao passo que as qualidades benéficas continuam sendo sempre as mesmas.
Agora, se entendemos isso, podemos deixar de lado as coisas secundárias. Então, a mente já não se agitará mais tanto se fizer sol ou chuva, se houver barulho ou silêncio, se comer doce ou salgado, ou mesmo se houver no coração raiva ou amor... independente de qual for a experiência, a mente estará pronta para acolher o que quer que seja e fazer o melhor uso possível do que estiver presente. E se não houver nada para se aproveitar, então a mente estará pronta para deixar passar.
Por isso o Buddha diz no Dhammapada aqueles versos que sempre repito:
- paciência é a maior ascese.
- contentamento é a maior riqueza.
Contentamento só é possível quando entendemos que qualquer coisa é boa o suficiente para sermos uma boa pessoa. Só quando compreendemos isso no fundo coração que conseguimos acolher tudo o que a vida trouxer. Isso é Amor e Equanimidade genuínos. Acolher com as mãos abertas tudo o que vier. O que for benéfico, usamos e cultivamos. O que não for, deixamos passar a seu próprio tempo. Mesmo a morte - deixamos ela vir e acontecer conforme seu próprio tempo. Isso é libertar-se da escravidão do desejo, e mover-se no mundo somente com paz e generosidade.
Não é fácil realizar isso, mas foi isso que o Buddha nos desafiou a investigar.
E não sei se seria certo dizer Morrer pelo Dhamma... acho que quem realiza o caminho morreria COM o Dhamma... Não é preciso morrer por algo que está disponível a todos. O Dhamma simplesmente é. O problema é que alguns morrem sem reconhecê-lo, ao passo que outros morrem cientes das coisas como na verdade são.