Segue um texto pessoal para reflexão e debate:
A Meditação e o Mosquito: Uma Reflexão Sobre Concentração e Virtude.
Era uma das minhas primeiras práticas de meditação. Cheguei por volta de 7h no escritório, bebi uma xícara de chá verde, comi um pão e preparei-me para a prática. Como faço sempre, reafirmo o refúgio na Jóia Tríplice; o Buda, o Dhamma e a Sangha, e então inicio a meditação.
Nessa época, já conhecia o básico dos ensinamentos do Buda, como as três características da existência (anicca – impermanência, dukkha – sofrimento e anatta – não-eu), as Quatro Nobres Verdades (o sofrimento, a causa do sofrimento, a cessação do sofrimento e o caminho para a cessação do sofrimento) e os cinco preceitos (não matar seres vivos; não tomar aquilo que não foi dado; não ter comportamento sexual impróprio; não mentir; e, não consumir substâncias embriagantes que causam negligência).
No que diz respeito aos cinco preceitos, mais precisamente o primeiro, não matar seres vivos, já havia compreendido que não se tratava apenas de outros seres humanos, mas de todas as criaturas que compartilham da nossa existência no samsara, o ciclo de renascimentos do budismo.
Ao dirigir-me para o local de meditação, vi aquele que seria a causa do descumprimento do primeiro preceito, o mosquito. Notei aquele minúsculo ser, que contrastava com o fundo branco da parede, e logo imaginei que eu seria o seu café da manhã, assim como o chá verde e o pão foram o meu, uma vez que eu permaneceria imóvel pelos próximos quarenta e cinco minutos.
Naquele momento, nem me passou pela cabeça tentar capturá-lo e libertá-lo na janela para que seguisse seu rumo, o sentimento que eu tive, lamentavelmente, foi o de soberba. Internamente, o ego se manifestou da seguinte forma: “Quem essa criatura pensa que é para interferir na minha sessão de meditação?”. E então, com um maço de papel, apliquei-lhe um golpe e a pobre criatura permaneceu estática no chão. Naquele momento, ainda me foi concedida a oportunidade de redenção, pois o mosquito não estava morto, apenas atordoado, e eu poderia tê-lo recolhido e jogado-o pela janela. Nesse caso, haveria uma grande chance de sobrevivência para ele, mas o desfecho foi ainda mais cruel, recolhi a pequena criatura, e, com ódio, joguei-o no vaso sanitário e permaneci olhando para ter certeza de que ele desceria com a água e não mais retornaria.
Então, com aparente satisfação pelo “dever cumprido” e indiferença pela vida de outro ser, sentei-me para a meditação. Contudo, aquela prática foi uma das piores que já experimentei, se não a pior. Logo após os minutos iniciais, os quais chamo de período de adaptação ao silêncio, quando a consciência interior, aquela independente do ego, começa a se tornar um pouco mais presente, pude perceber a gravidade do ato. Matar intencionalmente um inseto, por si só, já é um ato lamentável, mas quando você o faz com ódio, o resultado é ainda pior.
O que era para ser uma meditação de quarenta e cinco minutos, foi abreviada para alguns poucos minutos, devido à agitação mental provocada pelo ato impensado.
Nunca fui uma pessoa cruel com os outros seres vivos de uma maneira geral, mas sempre existiram alguns que faziam parte da minha “lista negra” e um deles era o mosquito. Quanto a esses, considerados pelo ego como menos dignos em relação aos demais, não havia espaço para compaixão.
Contudo, como a vida é um eterno aprendizado, ao esforçar-me para melhor compreender a Primeira Nobre Verdade do budismo, o sofrimento, percebi que, pelo simples fato de termos nascidos neste mundo, estamos sujeitos a situações desagradáveis, e, a investida de um mosquito, é apenas uma insignificante amostra do que isso representa.
O mosquito não está entre as causas do sofrimento, assim como nenhum dos outros fatores externos, a causa está dentro de nós, no ego, que sempre busca atribuir valoração a fenômenos impessoais e impermanentes.
Veja bem, não estou fazendo apologia à dengue, à zika, à chicungunha e, tampouco, à febre amarela, uma vez que não considero conflitante com o budismo o ato da conscientização e prevenção da proliferação dos mosquitos, cuidando para que não haja acúmulo de água parada. Também, não é necessário permitir que o mosquito se alimente do nosso sangue, pois existem repelentes.
Não parece existir mérito em desejar o bem apenas para aquelas pessoas próximas: parentes e amigos. Da mesma forma, não faz muita diferença cuidar apenas daqueles animais considerados “fofinhos”: cães, gatos, etc. A virtude está na igualdade, tratar a todos da melhor forma, desejar a todos a melhor sorte.
Esse fato aconteceu realmente e foi narrado com o intuito de utilizá-lo como objeto de reflexão para uma relação de interdependência no budismo: o avanço na prática da meditação e o desenvolvimento de virtudes.
Se o ato praticado contra um mosquito foi suficiente para perturbar o resultado de uma prática meditativa, o que faria uma ação prejudicial a outro ser humano?
Qualquer pessoa pode beneficiar-se dos efeitos da meditação, basta que reserve um período do dia, sem interrupções, sente-se confortavelmente, concentre-se na respiração e, em pouco tempo, perceberá uma redução do estresse. Contudo, para o budista, a meditação é apenas um dos elementos da prática. Esse ponto, a meu ver, é o que diferencia a meditação budista das outras formas de meditação da moda.
O caminho budista está fundamentado em três pilares: sila – moralidade (ou virtude); samadhi – concentração; e, pañña – sabedoria, nessa ordem. Portanto, a sabedoria (pañña) só é alcançada pela prática continuada da meditação (samadhi), que, por sua vez, não se desenvolve se não houver um comprometimento do praticante em abandonar as ações não saudáveis e cultivar as ações saudáveis (sila).
Mas o que são as ações saudáveis e não saudáveis? Para responder a essa pergunta é preciso adentrar em um outro elemento de estudo do budismo, o kamma – carma.
Kamma – carma, para o budismo, é o produto de nossas ações, saudáveis ou não saudáveis, e um dos fatores determinantes para a condição na qual nos encontramos na presente vida, bem como o orientador para a nossa próxima existência. Esse é um dos temas mais interessantes do budismo e será objeto de um artigo próprio, em breve. Por enquanto, é suficiente saber quais são as ações não saudáveis e as ações saudáveis, que, por sua vez, produzem o kamma não saudável e o kamma saudável, respectivamente.
São dez as ações não saudáveis (akusala-kamma-patha) que produzem kamma não saudável, opostos às dez ações saudáveis (kusala-kamma-patha) que produzem kamma saudável, uma das muitas demonstrações de dualismo encontradas no budismo, e são classificadas em ações do corpo, da fala e da mente.
As três ações não saudáveis do corpo são: matar; roubar; e, ter conduta sexual imprópria. Em contrapartida, as três ações saudáveis do corpo são: proteger a vida, não só a dos seres humanos, mas também a dos demais seres vivos menos privilegiados; praticar a generosidade; e, desenvolver o contentamento e o respeito à outra pessoa.
As quatro ações não saudáveis da fala são: a linguagem mentirosa; a linguagem maliciosa; a linguagem grosseira; e, a linguagem frívola (fútil, inútil). Em contrapartida, as quatro ações saudáveis da fala são: a linguagem verdadeira, confiável; a linguagem conciliadora, que une as pessoas; a linguagem gentil, que agrada as pessoas; e, a linguagem oportuna, sábia, de acordo com o Dhamma.
As três ações não saudáveis da mente são: cobiça ou inveja; má vontade; e, entendimento incorreto. Em contrapartida, as três ações saudáveis da mente são: contentar-se com a própria aparência e com aquilo que se possui, e alegrar-se pela aparência dos outros e pelo que as outras pessoas possuem; abandonar o entendimento de que existe um eu, um ego que comanda as nossas ações, e desenvolver a boa vontade; e, entender corretamente o Dhamma, um dos passos do Nobre Caminho Óctuplo, entender as Quatro Nobres Verdades.
Assim, o cultivo das ações saudáveis atua concomitantemente na produção de kamma saudável, importante para equilibrar o kamma não saudável produzido nesta e em existências anteriores, bem como suporte para o aumento da concentração na meditação, uma vez que os estados mentais inábeis são causas frequentes de interferências na prática e o desvio de pensamentos, dificultando consideravelmente o avanço no caminho budista.
Adicionalmente, temos no budismo a lista das dez perfeições – parami, um conjunto de virtudes que conduzem a pessoa ao estado de um Buda, as quais podemos, na medida das nossas limitações, tentarmos coloca-las em prática, quais sejam:
Dana – generosidade; sila – moralidade; nekkhamma – renúncia; pañña – sabedoria; viriya – energia; khanti – tolerância; sacca – fidedignidade; adhittana – determinação; metta – amorisidade; upekkha – equanimidade.
É importante pesquisar e estudar para entender qual o significado de cada uma dessas virtudes, uma vez que, dificilmente, uma única palavra de nosso idioma moderno é suficiente para exprimir todo o sentido do vocábulo em páli.