Como são as pessoas iluminadas?
O texto abaixo é a reunião e/ou interpretação de vários trechos do Cânone em Páli que caracterizam uma pessoa que tenha alcançado o Nirvana. Tendo sigo organizado por Shravasti Dhammika, esse texto pode ser útil para nos incentivar na prática e para nos mostrar o modelo das pessoas iluminadas que devemos seguir. Mas não se apegue a essas definições e nem às análises colocadas no final dessa mensagem, pois consistem na tentativa de descrever o indescritível, aquele que foi além de todo e qualquer rótulo, ou seja, o Arahant, aquele que atingiu Nirvana. Assim, use este texto com sabedoria e desapego.
Esse texto foi retirado do acessoaoinsight, onde você pode encontrar, ao final da página, notas indicando a que trechos dos Suttas cada parte do texto se refere.
Como são as pessoas iluminadas? Bem, alguns são homens e algumas são mulheres. Você poderia encontrá-los em um monastério ou numa casa, na floresta ou em uma pequena cidade do interior. É verdade que não há muitos deles, mas há muito mais do que as pessoas costumam pensar. Não é que a iluminação é inerentemente difícil; a triste verdade é que a maioria das pessoas não quer ter o incômodo de se dar ao trabalho de se erguerem do pântano da ignorância e do desejo.Em princípio você não notaria a pessoa iluminada no meio da multidão, porque ela é bastante calma e discreta. Mas quando as coisas começarem a esquentar, é quando ela se destaca. Quando todo mundo estiver inflamado pela raiva, ela ainda estará cheia de amor. Quando os outros estiverem em tumulto por causa de alguma crise ela estará tão calma como antes. Em uma corrida louca para obter o máximo possível, ela será a única em um canto com a expressão de contentamento em seu rosto. Ela caminha suavemente sobre a aspereza, ela é estável em meio à instabilidade. Não é que ela faça questão de ser diferente, mas é a liberdade do desejo que a faz completamente autocontrolada. Mas, estranhamente, embora outros não possam movê-la, sua presença calma os move. Suas gentis e equilibradas palavras unem aquelas em desacordo e aproximam ainda mais aquelas que já estão unidas. Os aflitos, os medrosos e os preocupados se sentem melhor depois de ter conversado com ela. Os animais selvagens sentem a bondade no coração da pessoa iluminada e não têm medo dela. Até mesmo o lugar onde ela permaneça, seja aldeia, floresta, montanha ou vale, parece mais encantador, simplesmente porque ela está lá.
Ela não está sempre expressando uma opinião ou defendendo um ponto de vista, na verdade, ela não parece ter quaisquer pontos de vista, por conseguinte, as pessoas costumam confundi-la com um idiota. Quando ela não se aborrece ou retalia os abusos ou ridicularizações, novamente as pessoas pensam que deve haver algo errado com ela. Mas ela não se importa com o que pensam. Ela parece ser idiota, mas é só que ela prefere permanecer em silêncio. Ela age como se fosse cega, mas na verdade ela vê tudo o que está acontecendo. As pessoas pensam que ela é fraca, mas realmente ela é muito forte. Apesar de todas as aparências, ela é tão afiada quanto o fio de uma navalha.
Seu rosto é sempre radiante e sereno porque ela nunca se preocupa com o que aconteceu ontem ou o que poderá acontecer amanhã. Seu porte e movimentos são graciosos e equilibrados, porque ela tem natural atenção plena em tudo que faz. Sua voz é linda de ouvir e suas palavras são afáveis, claras, e diretas ao ponto. Ela é bela de uma forma que nada tem a ver com a aparência física ou eloquência, mas que vem da sua própria bondade interior.
Ela pode ter uma casa, mas se esta queimar amanhã ela mudaria para outro lugar e ali se sentiria tão confortável quanto antes. Ela se sentirá em casa em qualquer lugar. Mesmo aquelas que tentam reduzir o número de coisas que possuem sempre parecem ter demais. Não importa quanto a pessoa iluminada receba ela sempre parece ter apenas o suficiente. É verdade, que ela busca satisfazer as necessidades da vida como todo mundo, mas ela toma apenas o que precisa e suas necessidades são muito pequenas. Sua vida é organizada e simples, ela se contenta com o que venha no seu caminho. Sua alimentação real é a alegria, sua bebida real é a verdade, sua verdadeira permanência é a diligência.
As pessoas comuns são tão barulhentas como riachos borbulhantes, enquanto a pessoa iluminada é tão silenciosa como as profundezas do oceano. Ela ama a calma e fala em louvor da calma. Isso não quer dizer que ela nunca abre a boca. Ela se sentirá muito feliz em falar sobre o Dharma para aqueles que estiverem interessados em escutar, muito embora ela nunca catequize e nunca irá se envolver em discussões ou debates. Além disso, como ela não fala além do que realmente sabe, tudo o que disser está suportado por uma autenticidade que os 'especialistas' simplesmente não podem igualar.
A mente da pessoa iluminada não está cheia de pensamentos nem é inativa. Quando ela precisa de pensamentos, ela pensa, e quando não precisa deles, permite que se calem. Para ela os pensamentos são uma ferramenta, não um problema. Ela ainda tem memórias, emoções e ideias, mas é indiferente a todas. Para ela, são apenas ilusões mágicas. Ela observa como surgem, como persistem, como passam. Sua mente é como o límpido céu vazio - as nuvens passam flutuando mas esta permanece espaçosa, límpida e inalterada.
Embora ela seja pura de todas as formas, a pessoa iluminada não pensa de si mesma como sendo superior, igual ou inferior a ninguém. Outros são tal como são, e não há necessidade de julgamentos ou comparações. Ela não é a favor ou contra alguém ou alguma coisa. Ela não vê mais as coisas em termos de bem e mal, puro e impuro, sucesso e fracasso. Ela entende o mundo da dualidade tendo ido além disso. Ela até mesmo está além da idéia de samsara e nirvana. Estando além de tudo, ela está livre de tudo. Sem desejos, sem medos, sem conceitos, sem preocupações.
Não há muito tempo a pessoa iluminada estava tão confusa e tão infeliz quanto todos os outros. Assim como ela realizou isso? Realmente foi muito simples. Ela parou de buscar a causa de todo seu sofrimento fora de si mesma e começou a olhar para dentro de sei mesma. Ao olhar, viu que as coisas com as quais ela se identificava e se apegava: corpo, sentimentos, emoções, conceitos, problemas, todos não são seus. E então ela simplesmente soltou daquilo. Não mais embaraçada no irreal ela viu o real, o Não-nascido, o Não-tornado, o Não-feito, o Incondicionado. Agora ela permanece nessa libertação no vazio e sem sinais e ela está feliz o tempo todo. Por isso, é bastante difícil de categorizar a pessoa Iluminada. Outros tentam limitá-la chamando-a de santo, Arahant ou mesmo às vezes tola. Mas ela ri desses rótulos e refere-se a si mesma como "um ninguém". Como é possível rotular alguém que transcendeu todos os limites? Como ela completou a sua tarefa e não tem mais nada para fazer a pessoa iluminada passa a maior parte de seu tempo sentada calmamente cuidando dos seus afazeres. A pessoa comum pode pensar que parece haver uma tediosa semelhança com a vida de uma pessoa iluminada. "Quero um pouco de emoção, um pouco de variedade", dizem elas. Mas é claro que quando chega a emoção ou a variedade do tipo que elas não querem - doença, fracasso, rejeição ou morte - elas então caem no desespero. É quando a pessoa iluminada silenciosamente se adianta para ajudar e curar. E como ela tem tempo de sobra, pode dar-se inteiramente aos outros. Ela toca a todos com seu amor.
Ela está feliz em permanecer assim até o final e quando a morte finalmente vier, ela irá abraçá-la sem medo e seguirá o seu caminho sem arrependimentos. O que acontece com a pessoa Iluminada após a morte? Os estudiosos têm argumentado sobre isso há séculos. Mas não é possível encontrar para onde foi o Iluminado, da mesma forma que é impossível traçar os rastros de pássaros que cruzam o espaço livremente. Na morte como na vida, Aquele sem Rastros não deixa rastros.
Algumas colocações
Primeiro parágrafo - uma coisa interessante a se observar aqui é que a Iluminação está ao alcance de todos e que, assim, não deve haver discriminação de gênero ou hierarquia, ou seja, tanto os homens como as mulheres, assim como tanto os monges quanto os leigos, são capazes de atingir o Nirvana - isso fica claro quando se diz que o Iluminado pode ser encontrado tanto num monastério como numa casa. Aliás, é curioso perceber que se diz que pode ser encontrado numa floresta ou numa cidade do interior, o que parece denotar que um Iluminado, espontaneamente, busca estar em lugares mais simples e menos povoados.
"Mas, estranhamente, embora outros não possam movê-la, sua presença calma os move" - esse é um trecho importante para se ressaltar que em muitas vezes precisamos aprender que mesmo silenciosamente podemos dar o exemplo e mudar a vida das pessoas, basta termos o bom senso de como agir. Muitas vezes alguns leigos e monges pensam que devem ensinar o Dharma para o maior número de pessoas possíveis - mas se elas não estiverem abertas a ouvi-lo isso não adiantará. Nesse caso, o melhor é você agir silenciosamente e ser um exemplo, na prática, dos benefícios trazidos pelo Dharma de Buda. Assim, aqueles que te observarem podem perceber sem explicações diretas e verbais que você pode ter algo de benéfico a oferecer.
No terceiro parágrafo isso é reforçado, mostrando que uma pessoa Iluminada não fica defendendo seus pontos de vista, isso porque ela já não tem apegos. Afinal, o que fazemos quando defendemos nossos pontos de vista? Queremos convencer alguém de que estamos certos, de que o que dizemos é correto e de que temos muita capacidade e inteligência, o que consiste em muito egocentrismo e apego desnecessário - por isso uma pessoa Iluminada não se interessa por isso. Ela só irá expor suas opiniões se alguém estiver disposto a ouvi-las, e só o fará com a intenção de beneficiar outros seres, não com a intenção de enriquecer um Ego que ela já sabe que não existe.
No quinto parágrafo, podemos perceber a penetração do Não-eu (Anatta) - nada nos pertence, tudo é impermanente e, assim, não devemos nos agarrar a nada. Nós costumamos ver o lugar onde moramos como nossa casa, e a casa dos outros como a casa dos outros. Por isso que se a casa de alguém pegar fogo, nós não nos sentimos tão afetados tanto quanto nos sentiríamos se a casa que habitamos fosse incendiada. Mas, na verdade última, nada aqui é nosso. As casas são só casas, esse site é só um site, nossos corpos são só corpos, são apenas fenômenos surgindo e desaparecendo - todos eles, independente se estamos envolvidos com eles ou não, se os "possuímos" ou não - vendo e penetrando isso, não nos apegamos a mais nada e assim estamos livres para ir a qualquer lugar, porque percebemos que não há moradia, não há lugar fixo e seguro, visto que tudo é Dukkha.
"Quando ela precisa de pensamentos, ela pensa, e quando não precisa deles, permite que se calem. Para ela os pensamentos são uma ferramenta, não um problema. Ela ainda tem memórias, emoções e ideias, mas é indiferente a todas. Para ela, são apenas ilusões mágicas. Ela observa como surgem, como persistem, como passam." esse é um trecho muito importante, visto que quase todos pensam no início da prática que os pensamentos são inimigos que devem ser silenciados e aniquilados para que se desenvolva a mente perfeitamente tranquila. Depois de algum tempo, admitiremos que não é assim que as coisas funcionam, mas é bom que saibamos já agora para não alimentarmos expectativas errôneas. O fato aqui é que precisamos nos desapegar do que não podemos mudar, e a natureza da mente é uma delas - assim como o corpo, cuja natureza é envelhecer, a natureza da mente é pensar e fazer ligações neurais, é uma coisa que não podemos impedir assim como a velhice. É por isso que mesmo uma pessoa que atingiu o Nirvana não pode controlar seus pensamentos, mas "permitir que se calem", ou seja, se desapegar deles e deixa-los soltos, sem alimentá-los. Além disso, os pensamentos não são vistos como inimigos, mas como ferramentas que devem ser usadas quando necessário, sem apego, cobiça ou aversão. Então, considere isso em sua prática e não seja aversivo aos seus pensamentos: desapegue-se deles e os compreenda, pois mesmo uma pessoa iluminada não silencia a sua mente quando deseja. Porém, deve se ressaltar uma possível diferença: uma pessoa iluminada há que ter uma mente melhor condicionada do que um praticante, de tal forma que seus pensamentos serão mais calmos, benéficos e bondosos do que de uma mente ainda em treinamento. Além desse quesito, vale notar a passagem que mostra como a pessoa iluminada vê a futilidade e fragilidade de tudo, ou seja, a Impermanência - devemos contemplar isso da mesma forma em nossas vidas.
O antepenúltimo capítulo deixa claro que uma pessoa Iluminada está além dos conceitos mundanos, além da dualidade a qual todos nós nos apegamos. Como dizia Ajahn Chah, Nirvana não é bem felicidade, mas é a transcendência tanto do sofrimento quanto da felicidade. Ele dizia que no começo devemos evitar o mal e desenvolver o bem e, assim que este estiver estabelecido, deve ser largado tanto quanto o mal: isso seria a Paz Suprema. Cabe a nós praticarmos e irmos para o além de todas essas conceituações para vermos por nós mesmos.
"Outros tentam limitá-la chamando-a de santo, Arahant ou mesmo às vezes tola. Mas ela ri desses rótulos e refere-se a si mesma como "um ninguém". Como é possível rotular alguém que transcendeu todos os limites?" - ao ler isso lembrei do depoimento de uma pessoa que viu alguém fazer uma pergunta a Ajahn Chah, o qual muitos acreditam que alcançou o Nirvana, e receber uma resposta que deixa claro que um Arahant (aquele que alcançou a Iluminação) elimina a presunção , o orgulho e a ideia de um Eu, veja:
"Uma vez um visitante perguntou a Ajahn Chah se ele era um Arahant. Ele disse: 'Eu sou como uma árvore em uma floresta. Os pássaros vêm até a árvore, sentam nos galhos dela e comem suas frutas. Para os pássaros, a árvore pode ser doce ou amarga ou o que quer que seja, mas a árvore não sabe nada sobre isso. Os pássaros dizem doce ou amarga, mas do ponto de vista da árvore, isso é apenas tagarelice dos pássaros.'"
"A pessoa comum pode pensar que parece haver uma tediosa semelhança com a vida de uma pessoa iluminada. 'Quero um pouco de emoção, um pouco de variedade', dizem elas. Mas é claro que quando chega a emoção ou a variedade do tipo que elas não querem - doença, fracasso, rejeição ou morte - elas então caem no desespero. - podemos usar esse trecho para nos lembrarmos de Dukkha no sentido de roda de uma carroça. Não há como pararmos em apenas um trecho da roda, pois o círculo tende a continuar girando. Então, cobiçar algo emocionante ou ser aversivo a algo desagradável, tudo isso só traz sofrimento, o desconforto da Impermanência, Dukkha.
Quanto ao último parágrafo, melhor não dizer nada. Melhor é terminar por aqui, porque tentar escrever sobre o Incondicionado é uma tarefa muito complicada - definir o indefinível é apenas apontar como ir além, mas acho que o último parágrafo já mostra que não sequer um 'além'.
Como gosto de dizer, é como se fôssemos pássaros que ao atingirem o Nirvana compreendem que todas as árvores morrem e que mesmo eles morrem. Dessa forma, podem voar livremente por entre elas sem dizer "Essa é minha, vá embora!". Assim, estaremos livres e compassivos para compartilhar tudo o que existe e leves para voar para onde quisermos até o momento em que nossas asas já não mais funcionarão e não ficaremos tristes por isso, de tal forma que não haverá mais desejo para nos trazer de volta para cá e para nenhum outro lugar onde haja impermanência, elementos ou essa existência. Não há como se discutir para onde vai um Iluminado, porque a Iluminação é simplesmente cessar renascimento e sofrimento: isso é Parinirvana.
Que um grande número de seres possa realizar tal façanha. Que um grande número de seres realize a Paz Suprema.