Olá pierrot e Aurora!
Essas perguntas que você fez são complicadas, porque a resposta depende do nível em que você está na prática... ou depende do nível que você quer se comprometer a praticar.
Geralmente os mestres olham para o nível de quem pergunta e tenta responder de acordo com o seu nível... porque é uma questão realmente difícil. E quando a prática começa a causar essas dúvidas no coração, é porque ela já está surtindo um certo efeito e "chacoalhando" nossos apegos, nos fazendo questionar: qual o sentido da vida, de fato?
Assim, primeira coisa é que música e futebol são prazeres sensuais. O que é isso? Prazeres sensuais são os prazeres que desfrutamos pelos 5 sentidos: visão (paisagens, filmes, corpos bonitos), audição (músicas, poesias, elogios), paladar (sabores e gostos), olfato (cheiros e fragrâncias) e tato (sensações térmicas, táteis, entre outros). E dentro dessa história entra ainda o sexto sentido (a mente) com as fantasias sobre o mundo dos 5 sentidos.
Ok. E o que o Buddha dizia sobre os prazeres sensuais? Ele dizia que são prazeres menores, que não trazem benefício. E que sofremos muito perseguindo nossos desejos sensuais, para desfrutarmos de prazeres que nunca nos satisfazem, ou que nunca nos deixam plenamente saciados. Mas é assim, não é? Satisfazemos nossos desejos sensuais um pouco, e eles sempre voltam. Não há nenhum prazer sensual que nos traga plenitude permanente... porque o prazer sempre acaba, a experiência é impermanente, e então os desejos voltam de novo.
Em geral nós nos conformamos com isso, não é? O problema é quando colocamos como sentido da vida desfrutar dos prazeres sensuais. Por quê? Porque isso é sofrimento na certa. Uma coisa básica nos ensinamentos do Buddha é: Experiências e Preferências são impermanentes. Tanto o que você experimenta dura pouco, assim como o que você gosta ou não gosta. Por isso que nem um desses dois é o Eu. Eu não sou minhas experiências, e também não sou minhas preferências, porque essas coisas mudam. Nenhuma dessas coisas faz parte intrínseca de mim, porque tudo isso passa. Tanto o que vivo, como o que prefiro. Posso gostar de futebol, animes, chocolate... e com o tempo não gostar mais. Ou posso ter muita vontade de ouvir uma música agora, mas se eu ficar 1 hora ouvindo-a continuamente, uma hora posso acabar enjoando... Essa é a natureza dos prazeres sensuais. Eles se esgotam, não são estáveis, não é um prazer contínuo.
Então, o sentido da vida não é ficar atendendo nossos desejos sensuais. Uma coisa que eu reflito muito é: não estou aqui para correr atrás de experiências que mudam, baseado em preferências que mudam.
Bom, aqui tem 2 níveis basicamente: um nível no qual a pessoa persegue seus desejos com uma sede louca (tem história de pessoas que morreram jogando video-game ou se masturbando), e outro em que a pessoa vive seguindo seus desejos, mas de forma menos louca rsrs... Que é o mais comum... as pessoas trabalham, sofrem um pouco, mas em troca desfrutam de alguns prazeres como o frescor do ar condicionado, o conforto de assistir um filme no domingo, a praia nas férias, entre outros.
Um outro nível é o nível básico que o Buddha propunha, que era o de reconhecer que o prazer sensual é como um prazer para crianças, se comparado ao prazer espiritual. E o que constitui o prazer da prática espiritual? Basicamente: virtude, meditação e sabedoria. O prazer da tranquilidade, o prazer de ter poucas necessidades, o prazer da paz mental, o prazer do êxtase meditativo, o prazer da caridade, o prazer de ajudar aos outros, o prazer de não se agitar muito com os choques da vida... existe um elemento prazeroso na prática espiritual.
E dentro da prática existem muitos níveis... Existe um nível de prazer por ser virtuoso, um nível de prazer da meditação profunda, um nível de prazer por ter compreendido os ensinamentos... até o último nível.
A proposta do Buddha é que abandonemos GRADUALMENTE a busca pelos prazeres sensuais, e que possamos substituirmos isso pelos prazeres espirituais. Mas nenhum dos dois é um fim em si mesmo. O prazer sensual não teria finalidade útil rs. O prazer espiritual teria a finalidade de suster e alegrar a mente para que ela possa ter a energia necessária para contemplar os ensinamentos e chegar à sabedoria final.
Aí tem muitos níveis. O básico são os 5 preceito. Abster-se do prazer de agredir, do prazer de roubar, do prazer do sexo desenfreado, do prazer de fofocar, de causar intrigas, de contar mentiras para encantar os outros, de usar álcool ou drogas... isso já é renunciar a alguns prazeres sensuais.
Mas e quanto aos prazeres mais comuns do dia a dia? A renúncia é gradual.
Quer dizer que música e futebol são coisas ruins? É o que eu disse. Depende do nível de prática que vocÊ está seguindo.
Mas, no nível mais profundo (que geralmente nós não gostamos de olhar), buscar esses prazeres é inútil. Inútil porque:
- os prazeres provenientes disso são impermanentes;
- são prazeres sem muita utilidade e benefício;
- suas preferências vão mudar.
É certo que o que você gosta ou não gosta vai mudar. Pense no que você gostava quando criança, quando adolescente. No que você odiava, e que hoje você preza.
Pode ser que música ou futebol sejam coisas adoradas por você por toda essa vida, até agora, mas se você conseguir pegar esse raciocínio da impermanência, poderá ver que nenhuma das nossas preferências é certa ou eterna.
Então, como fazer? Largar tudo o que te traz alegria? O que te traz descanso? O que te dá um rumo na vida, muitas vezes?
Não de forma radical. A renúncia é gradual.
E como se faz essa renúncia é algo que temos que investigar no coração. Porque, primeiro, a mente não vive sem prazeres (ela precisa de algo que lhe dê energia, por isso temos que trocar aos poucos os prazeres sensuais pelos espirituais) e esse ensinamento dos prazeres sensuais é algo muito difícil de entender, mas é uma Verdade (com V maiuscúlo rs) profunda.
Então, nós tomamos os 5 preceitos como base (que já é bem difícil), e vamos aprendendo os ensinamentos, conhecendo a alegria de ser uma boa pessoa, a alegria da meditação, a alegria de ajudar aos outros. E à medida que você for reconhecendo esses prazeres, um pouco naturalmente e um pouco por meio de esforço você vai conseguindo se desprender da buscar por prazeres sensuais. Mas tem que dar muito tempo para aprender isso na própria prática - não tenha pressa.
Porque é algo difícil de entender mesmo. Quando a gente pensa nisso é como se a gente perdesse o chão. É como se dissessem para nós que tudo o que nós acreditávamos, ou tudo o que nos traz alegria, na verdade é mal, é ruim. É como se tivéssemos que largar o que somos, o que nos fazer ser o que somos, é uma sensação ruim... Então tem que investigar com calma.
Tem muita gente que pratica o Budismo há anos, mas ainda assim usufrui de alguns prazeres como assistir um programa favorito ou tocar um instrumento musical... Outros com pouco tempo já renunciam. Depende de cada um.
O essencial que você tem que investigar dos ensinamentos do Buddha é INTENÇÃO. Aqui está o ponto chave para a investigação. Qual é a sua INTENÇÃO quando você age, fala ou pensa? Esse é o ponto.
O Buddha pediu, no segundo fator do Nobre Caminho Óctuplo, para abandonarmos as intenções de Desejo Sensual e Raiva, e trocarmos isso por Renúncia e Amor. Então, o rumo gradual da prática é parar de agir baseado em gosto/não-gosto, e agir baseado em "isso é benéfico ou não?". WOW, isso é muito difícil de entender também!
Porque à medida que a prática fica profunda (anos, pode demorar anos!), cada coisinha que você faz é permeada por essa ponderação: isso é benéfico ou não? É generoso ou não?
Perceba a profundidade disso: significa passar a viver fazendo as escolhas não baseado nas suas preferências, mas nas intenções. "Eu quero comer isso porque é gostoso, ou por que preciso?"; "Eu vou dizer isso porque é divertido, ou porque pode trazer alegria às pessoas?", "Eu vou tocar essa música para me distrair, ou para trazer bons sentimentos para todos?", "Eu vou ficar em casa porque quero fugir das pessoas, ou porque há algo útil que posso fazer aqui agora?", "Eu vou assistir esse programa e me embriagar de tanto ver, ou vou ver o suficiente, porque é algo que me acrescenta?", "Eu vou trabalhar porque quero dinheiro para ter as coisas que gosto, ou para buscar o que preciso?"... E por aí vai a lista de exemplos...
É um enorme desafio você investigar a intenção por trás de CADA COISA que você faz, fala ou pensa.
"Por que estou tendo essas fantasia de que sou um super-herói? Por quero ser amado? Quero ser elogiado?", "Por que estou imaginando isso? Porque desejo aquilo?"...
Mas a prática é uma escada, então a gente vai investigando.
Mas no final o Buddha diz que o que descobrimos é justamente isto: que nenhum prazer sensual faz sentido, porque não traz plenitude, e porque nossas preferências mudam.
E aí passamos a deixar que esses desejos que surgem passem a seu próprio tempo, e vamos nos movendo no mundo somente por generosidade. Esse é o ápice. Mover-se no mundo só por generosidade. Comer, trabalhar, caminhar, falar, pensar, silenciar, dormir... por generosidade.
Essa é a felicidade de ter poucos desejos, diria o Buddha. Ou o contentamento proveniente de ser fácil de satisfazer. De ter poucas exigências. Poucas necessidades. Isso, por si só, já é um prazer superior.
Eis um resumo pobre, mas abrangente kkk... Então, investigue no seu coração, e vá praticando de acordo com o que você quiser se comprometer.
Não precisa abandonar o futebol e a música, mas fique sempre de olho nas suas intenções... A intenção que está aí é sempre o desejo de ter aquele prazer de estar com os amigos na torcida, ou de ter as condições de ouvir aquela música... às vezes ouvir várias vezes... poder ter o domínio sobre a TV para que ninguém mude do canal em que está passando o jogo... e assim vai.
Isso é um prazer. Mas como é o prazer que é capaz de estar presente tanto quando temos o que gostamos, como quando não temos o que gostamos?
Que prazer é esse que é capaz de estar ciente quando estamos experienciando algo ruim ou algo bom? Que paz é essa que é capaz de acolher qualquer coisa que esteja presente? Que contentamento é esse capaz de dizer "Tanto faz" quando podemos escolher entre algo atraente e algo indiferente? Que êxtase é esse que surge, quando não levamos mais tão a sério nossas preferências, mas valorizamos mais as intenções? O que acontece quando você para de viver vida após vida correndo atrás de experiências que mudam, baseado em preferências que mudam? O que acontece quando você para de se identificar com suas experiências e preferências, e reconhece que está sempre mudam? E quando as experiências e preferências deixam de ser sua base de decisão, para onde a mente vai?
É assim que o Dhamma nos chacoalha rsrs... Uma coisa interessante para contemplar é quando os amigos mudam. Às vezes olhamos para um amigo de infância e perguntamos: por que você mudou? Antes era tão bom! Éramos tão amigos! Tínhamos os mesmos interesses! Nos divertíamos tanto! Por que você mudou?
Aí sentimos nostalgia, vontade de voltar no passado e tantos outros desejos... Mas a vida é assim. A mente é assim. É tudo impermanente. As pessoas mudam, seus amigos mudam, e VOCÊ muda.
Por isso que o sentido da vida não é correr atrás de experiências ou preferências. O sentido da vida é cultivar as boas intenções.
Teve um post eu acho, que eu disse que porque a certeza da vida é a impermanência, todo o resto é incerto. Se entendemos isso, então a única certeza que podemos ter sobre o que devemos fazer na vida é ser uma boa pessoa... Como faremos isso, muda, é incerto, mas tem várias formas. Pode ser como padeiro, bibliotecário, bancário, funcionário público, lixeira, engenheiro, músico, professor... Há vários formas de conseguir seu ganha-pão e, ao mesmo tempo, fazer um trabalho que beneficie a todos os seres.
A forma externa (profissão) é incerta. Mas a única certeza que você pode ter, é que a única coisa que realmente importa é que essa profissão seja honesta e feita com intenções hábeis. Essa é a única meta que podemos ter do nascimento à morte. As outras metas mudam. Então, não leve muito a sério o que você gosta, o que você odeia, ou no que você vai trabalhar. Leve mais a sério as intenções que você cultivar no coração. Sob que condições ou profissão você cultivará essas intenções é secundário.
Sobre o desejo de crescer profissionalmente, não é um desejo de todo ruim. Só seja cuidadoso para olhar: qual a intenção? Qual a finalidade? Qual a motivação? Qual o objetivo? Não faça com que os prazeres do mundo dos 5 sentidos seja um fim em si mesmo. Porque, no Budismo, há muito mais do que esse mundo dos 5 sentidos.
E para você ver como isso é verdadeiro, pense nos retiros. O que se faz nos retiros? Os leigos adotam os 8 preceitos. Veja o sétimo:
Eu tomo o preceito de abster-me de dançar, cantar, ouvir música, ver espetáculos de entretenimento,de usar ornamentos, usar perfumes, e embelezar o corpo com cosméticos - http://www.acessoaoinsight.net/caminho_liberdade/oito_preceitos.php
Por quê? Porque quando abandonamos a busca pelos prazeres sensuais, podemos focar mais no treinamento da mente e do coração, e podemos investigar os desejos e apegos que ardem aqui dentro. Aí podemos ver: o que é isso? Esses desejos são permanentes? Os prazeres sensuais são duradouros? O que de fato estamos fazendo aqui?
Por fim, eu disse que há vários níveis na prática... o nível externo mais alto é a vida dos monges, não é? Eles não fazem sexo, não podem ouvir música, não podem ver TV, não comem depois do meio-dia... porque comer também é um prazer sensual rsrs... Mas eles treinam para comer só o suficiente, por generosidade.
E como eles vivem? Aprendem a viver baseados no prazer da caridade e da meditação. Porque veem isso como um prazer maior:
Se, pela renúnciaa uma felicidade inferior,é possívelalcançar uma felicidade superior,que o homem sábioabandonea inferiorpela superior. - http://www.acessoaoinsight.net/dhp/dhp20.phpVeja sexo, por exemplo. É um prazer sensual. O Buddha pede, como base, que tenhamos moderação e fidelidade na relação com sexo. Mas, nos últimos níveis, sexo é algo que é abandonado, porque é algo visto como um prazer menor comparado aos prazeres espirituais. Mas não precisa abandonar o prazer sexual imediatamente, investigue isso aos poucos.
Por exemplo, existem 4 níveis de iluminação: Sotapanna, Sakadagami, Anagami e Arahant (o último nível). Até o Sakadagami, existiram discípulos nesse nível que praticavam sexo. A partir de Anagami, diz-se que o sexo já não faz mais sentido.
Então é assim, a prática de renúncia é uma escada.
Vou deixar alguns textos e vídeos que me virem a mente agora para ajudar na sua reflexão e contemplação!
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Alguns Suttas sobre as Desvantagens dos Prazeres Sensuais (pouco satisfatórios, dependem de fatores externos, há muito sofrimento na sua busca, etc. Lenha o segundo texto, sobre o Símile do Osso lambuzado de Sanghe!): Desvantagens dos Prazeres Sensuais
Sobre Renúncia: Acesso ao Insight - Renúncia
Texto do Ajahn Brahmavamso - Ajahn Brahmavamso - Dar sentido à vida, morrer com alegria! - esse texto é interessante, pois o Ajahn Brahm mostra como o prazer da virtude é superior aos prazeres sensuais e mesmo ao prazer de ver a beleza da vida (ver a chuva, o cheiro de uma flor etc).
A Felicidade na Perspectiva Budista, por Jetsunma Tenzin Palmo: Vídeo - Jetsunma Tenzin Palmo
Gangaji: Pare de olhar para o que você deseja: Vídeo - Gangaji
Márcia Baja: Vídeo - Márcia Baja (tem uma parte nesse vídeo, no começo, que eu lembro que ela fala sobre parar de se identificar com o gosto/não-gosto)
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Enfim... pense só que viver baseado nos desejos sensuais sempre depende de fatores externos. Sempre depende do lugar, do tempo, das pessoas com quem você está, ou da oportunidade defazer o que você quer fazer...
Agora, há uma felicidade interior, que independe de fatores externos. Essa é a chave da Frugalidade (poucas necessidades).
Enquanto corremos atrás de coisas externas e inúteis, temos muitas necessidades. Só ficamos felizes se estamos em lugar x, na hora y, com certas pessoas, vendo aquilo que queremos, ouvindo aquilo que queremos, comendo aquilo que queremos, cheirando aquilo que queremos, tocando aquilo que queremos.
Agora, quando reconhecemos que o que realmente importa são as intenções que cultivamos no coração, então vem a pergunta: do que eu preciso para cultivar as boas intenções? Do que realmente preciso? Qualquer coisa é boa o suficiente. Em qualquer lugar, a qualquer hora, em qualquer circunstância, podemos ser boas pessoas. Então, o prazer de ser uma boa pessoa é bem mais inteligente, porque não depende de fatores externos. Essa é a alegria de ter poucas necessidades.
Para desfrutar dos prazeres sensuais há muitas exigências e protocolos. Para desfrutar dos prazeres espirituais, não precisa de quase nada. Qualquer coisa é boa suficiente, qualquer coisa é bem-vinda.
Por fim, deixo aquele verso do Dhammapada:
Contentamento é a maior riqueza. - http://www.acessoaoinsight.net/dhp/dhp15.8.php
Ou ainda, aquele que tem menos necessidades é o mais rico de todos, porque ele reconhece que não se precisa de muito para fazer o que realmente importa. Agora, aquele que acha que precisa de muitas coisas, o acha porque valoriza coisas que não importam porque sempre mudam.
Melhor parar de escrever, porque lendo pode ser inspirador, mas na prática é mais difícil. Mas investigue aos poucos, porque os prazeres espirituais são realmente superiores!
E obrigado por essa oportunidade de conversar sobre prazeres sensuais! Parece que faz tempo que não escrevo sobre!
Mas sabe, é um prazer escrever por generosidade... por generosidade.