Olá Edson, tudo bem? :)
Vale salientar que a INTENÇÃO sempre será o ponto de partida budista para julgar se uma ação é benéfica ou não.
Muitas pessoas simpatizam com alguns aspectos "antirreligiosos" do Budismo, que lhe oferece uma imagem de filosofia de vida equilibrada sem rituais exagerados ou fés irracionais, porém as venerações costumam assustar mesmo rs.
Mas depende muito da linhagem. Certas linhagens ensinam venerações de fato fúteis, exageradas e sem valor, que estimulam a idolatria e a superestimação de um monge ou monja.
Porém, isso não exclui a veneração da prática budista. É muito comum um budista se curvar diante de uma estátua do Buddha. Eis então que muitos veem isso como um ritual tolo, desnecessário ou dogmático.
Exemplo disso é a tradição de se curvar diante de um monge 3 vezes. Para muitos, isso não é equilibrado, mas para os budistas mais esclarecidos, isso é apenas parte do treinamento da mente. Qual a intenção da pessoa que reverencia o monge?
Existe uma cultura entre os budistas tradicionais de reconhecer os monges como pessoas dignas de, pelo menos, respeito e gratidão, uma vez que se comprometeram em seguir um caminho mais dedicado ao treinamento da mente, envolvendo abstenção de vários fatores mundanos como dinheiro, sexo, família e emprego. Com isso, podem conhecer melhor a si mesmos para, então, passarem seus aprendizados valiosos aos leigos que, embora não tenham adentrado à vida religiosa e mendicante do monge, também se dedicam ao treinamento de suas mentes na vida mundana, social e/ou familiar.
Isso, por si só, já é um diferencial que fazemos de monge x leigo. Os monges se dedicam mais profundamente ao treinamento da mente, renunciaram a muitas coisas e ainda separam parte de seu tempo para nos ajudarem a compreendermos melhor o caminho espiritual. Esse é o motivo básico porque nos curvamos diante deles.
Agora, lembre-se que uma coisa que Buddha disse que deve ser abandonada é o apego a preceitos e rituais. Engraçado, não é? Porque um dos princípios da prática de um budista leigo são os 5 preceitos. Além disso, o Budismo tem alguns tipos de rituais, como curvar-se diante de um monge, como eu já disse. Então, como é isso, não apegar-se a preceitos ou rituais? Significa abandonar a fé tola de que apenas por FAZER alguma coisa, a sua mente será purificada. Muitos têm essas ideias de que através da prática de rituais, somos purificados, não é? Se eu orar todos os dias, se eu percorrer um trajeto de joelhos, se eu jejuar, se eu me curvar 3 vezes a um monge... Mas e se, depois disso, continuamos alimentando egoísmo, temendo a morte, resistindo a prática da generosidade, desconhecendo o contentamento que silencia a mente? De nada adianta praticar esses rituais sem a INTENÇÃO benéfica.
Por isso eu digo: não se preocupe com as aparências das ações, mas com a essência das intenções.
Qual a intenção ao orar? Qual a intenção ao jejuar? Qual a intenção ao se curvar 3 vezes diante de um monge?
Um budista esclarecido não reverenciará um monge ou uma estátua de Buddha porque isso é um ritual obrigatório que tem de seguir para avançar no caminho. Mas sim porque reconhece isso como um costume, uma tradição que tem sido usada pelos praticantes e contemplativos para treinar a mente, sendo realizada ao mesmo tempo em que se desperta e alimenta gratidão e admiração na mente por alguém que pratica a simplicidade, a renúncia e o desapego. ISSO é prática. É o fazer com intenção hábil. Não é o mero fazer.
Por que esses 5 preceitos? Tem de olhar a intenção implícita - são normas com as quais o Buddha estabeleceu um mínimo de prática da qual um praticante deve partir para se desenvolver no seu caminho espiritual.
Então, o ponto é sempre a Intenção. Esse é o segundo fator do Nobre Caminho Óctuplo. Isso é o que revela a qualidade de Karma. Karma não é so Ação, é Ação INTENCIONAL. Qual a intenção ao dizer algo, ao fazer algo, ao pensar algo?
No entanto, não se deve usar isso para ver as convenções sociais como inúteis. Não. A colocação de algumas normas e preceitos básicos são úteis, pois nem sempre podemos confiar nas nossas mentes para julgar aquilo que é benéfico ou não fazer. Às vezes estamos em dúvida sobre como agir numa determinada situação, e quando temos uma norma básica, podemos segui-la com a intenção de resistir aos argumentos da mente, que as vezes é muito traiçoeira, distorcendo as coisas para nos fazer pensar que o Apego às vezes é justificável ou perdoável. Nesses momentos, sorrimos para essa mente destreinada e simplesmente voltamos a fazer aquilo que foi normatizado pelo Buddha, e com isso podemos seguir convictos no Caminho sem nos deixarmos ser enganados pela mente. Mas isso só é algo que se vê na prática, que se vê quando se quer fazer algo que a mente não quer fazer... rs
Então, sintetizando: normas e preceitos são importantes, mas entenda que eles só servem ao treinamento da mente quando são feitos com a intenção consciente de que há algo benéfico sendo cultivado.
Então, essa cultura de reverenciar os monges 3 vezes é uma convenção no meio budista que vemos como benéfica, que serve de gratidão e respeito a alguém que segue o caminho e busca mostrá-lo a nós.
Agora, vale ressaltar que essa ideia comparativa de igual, superior ou inferior a outro é tola, do ponto de vista budista. Em qualquer momento em que alguém sustenta qualquer uma dessas três ideias, a pessoa se afasta da Iluminação. Inclusive, a ideia de que "Sou mais generoso do que os outros... Sou superior aos outros... Alcancei um estado meditativo que poucos alcançam..." costuma ser um dos obstáculos presentes do início até quase o finalzinho da prática... Para quem reconhece a complexidade e abrangência da mente, percebe que cada ser é único, ao mesmo tempo que compartilha de várias coisas comuns com todos os seres. Portanto, um Iluminado não se vê superior a ninguém, apenas se vê como alguém que terminou um caminho que pode ser realizado por qualquer outro.
E, sobre curvar-se a um monge, é uma tradição que aconselho a usar com intenções benéficas. Use isso para cultivar gratidão, humildade, respeito... É um gesto que praticamos não apenas com a ideia de que é um hábito, um costume que tenho que fazer porque sou budista... Mas sim com a ideia de que é um costume ou uma convenção social que podemos utilizar para purificar as intenções da mente.
Entre os monges também existe essa cultura do monge mais novo reverenciar o monge mais velho. Lembro de um episódio em que Ajahn Chah, abade de um monastério, recebeu o abade de outro monastério, não lembro quem. Como eram abades, líderes de seus monastérios, não havia costume algum para que um se curvasse ao outro, mas mesmo assim Ajahn Chah curvou-se para o visitante, e esse respondeu ao gesto na mesma moeda. Isso é um sinal de alguém que reconhece que a prática se faz sempre pelo uso de intenções benéficas, sendo fazendo uso das convenções sociais, sendo indo além delas. Porém, vale lembrar de novo, as vezes é bom termos essas convenções, pois nem sempre podemos confiar em nossas mentes para julgar o que é hábil e o que é inábil.
Portanto, também há algumas venerações que são inábeis. Algumas pessoas, de fato, se curvam a monges com intenções tolas e obscuras, colocando uma pessoa como um ídolo ou coisa do tipo. Isso não é a intenção que deve ser cultivada por quem deseja seguir as pegadas do Buddha, que cultivou as intenções de Renúncia, Desapego e Contentamento.
Apesar disso, Reverência é algo que acho útil no universo budista, tanto que aqui mesmo eu coloquei um Smiley de reverência:
Isso pode ser usado com qualquer um. Abade x Abade, monge noviço x Abade, monge x monge, leigos x monges, leigos x leigos também.
Já me curvei até a mim mesmo hahaha
E é verdade, já foi útil em alguns momentos na minha prática... Lembro de uma vez que minha mente estava muito agitada porque eu não estava cedendo aos seus desejos, e num momento eu percebi que eu estava ficando aversivo àquilo. É difícil isso... Embora você resista aos Apegos da mente, precisa aprender a "resistir" sem força, sem raiva, sem aversão... Resistir não é uma boa palavra, afinal. Trata-se de mudar o que você está cultivando. A mente desperta um apego por algo inábil e você torna a cultivar outra coisa, como o Contentamento, que é uma qualidade muito interessante. É algo do tipo: independente do que estiver presente, é bom o suficiente para estar contente e fazer algo benéfico. É muito interessante esse sentimento. Significa que não importa qual a circunstância, você sempre dirigirá energia para fazer algo generoso - isso basta. As pessoas podem estar te criticando, seu corpo pode estar doendo, você pode estar num lugar confortável, você pode estar comendo algo delicioso, pode ser que esteja um calor insuportável, pode ser que alguém esteja te elogiando e te colocando lá em cima, pode ser que sua mente esteja em êxtase e silêncio profundo ou com raiva e repleta de pensamentos aleatórios - TUDO BEM. Qualquer experiência é boa o suficiente para cultivar aquilo que é benéfico, que é basicamente estar contente e fazer coisas generosas. Isso significa que a transformação da mente não ocorre forçando-a a ser de outro jeito, mas ocorre deixando-a manifestar todas suas disfunções sem alimentá-las. Eu sempre ressalto a frase no topo do site: é EVITAR o mal e cultivar o bem, não é LUTAR CONTRA o mal e cultivar o bem. Sempre que o mal se manifesta na mente, não tente repreender, expulsar, destruir aquilo. Deixe estar, e torne a cultivar aquilo que é gentil. Se a mente está inquieta, sorria. Se a mente está raivosa, ame. Eu lembro daquela palestra do Ajahn Brahmavamso, intitulado no Youtube de "Amando seus sofrimentos". Isso é desapegar-se do sofrimento, é destrui-lo deixando-o existir. Somente quando alcançamos um grau de contentamento e amor no qual deixamos o sofrimento ou raiva presente arderem por quanto tempo quiserem, é que essas emoções ruins enfraquecem e somem. Aí é que entendemos o que significa que "a ausência de desejo leva a ausência de sofrimento". Enquanto há o desejo por ter algo, por maltratar alguém, ou ainda desejo por purificar a mente ou por acalmá-la, há sofrimento, há desconforto. E por isso Buddha chamou essa prática de sutil, enigmática, sublime, difícil de compreender. Como alcançar um nível espiritual maior, como avançar, sem esse "desejar"? Cabe a nós aprender a praticar cultivando a renúncia - Esforço Correto é renunciar, é desapegar! Engraçado, não é? Lemos lá - Esforço Correto - e então ficamos nos revirando, tentando forçar essa mente a silenciar. Isso é tentar acalmar a mente com raiva, com desejo. Não é assim. Deixe o desejo arder, deixe a raiva arder, e enquanto isso cultive amor, cultive contentamento. Não é gostar de sofrer, mas é permitir que o sofrimento esteja por quanto tempo ele tiver de estar, porque quando você desejar que ele pare, aí é que ele não vai parar. Agora, quando você deixar o sofrimento estar, só então ele se vai.
Interessante, não? Quando você permitir que a mente se agite, quando você não
desejar que ela se acalme, só então ela se aprofunda nos estamos meditativos. Isso é algo difícil de compreender e nao vale ficar escrevendo sem ir ver na prática, não é?
Então, voltando, porque escrevi tudo isso para falar de curvar-me a mim mesmo rsrs. Quando eu percebi que eu estava cultivando o desejo porque minha mente parasse com a raiva, eu percebi que estava fazendo errado. Desejar que a raiva vá embora só aumenta a raiva. Porque raiva é justamente isso: é querer remover algo da sua experiência. Então eu "amei aquela raiva". A raiva chamava a atenção da minha mente, mas eu voltava a atentá-la ao sentimento de amor, de acolhimento, de aceitação. "Pode estar, raiva, pelo tempo que quiser. Não vou alimentá-la, não vou tentar eliminá-la. Não terei nenhum desejo em relação a você. Apenas continuarei fazendo as coisas generosas e benéficas que me comprometi a fazer.". Então a mente acalmou aos poucos. Isso foi muito difícil de fazer, porque eu ainda tinha essa ideia muito enraizada de que eu precisava FAZER alguma coisa para purificar a mente. Então, quando a mente deu uma acalmada, eu me curvei. Sozinho, sem ninguém perto. Eu me curvei e pensei comigo mesmo o quão grato eu era por aquilo que eu havia feito, porque para mim isso era algo difícil de entender (isso de que o não-desejo por x nos leva a obtenção de x). Então, ao me curvar a mim mesmo, agradeci a mim mesmo e despertei essa energia de "Obrigado... Reconheço o quão difícil é fazer isso, mas, por favor, sempre que isso acontecer, repita essa intenção desapegada outra vez, porque sempre agradecerei de novo e de novo por isso, em meu nome e no nome de todos os seres.". É engraçado, não é? Você se torna o reverenciador e o reverenciado. Você agradece a si mesmo porque salvou a si mesmo - e com isso ajuda a salvar tantos outros seres. Porque quando você entende essa terceira nobre verdade, pelo menos num pequeno instante, num pequeno insight, de que o Desapego do Desejo leva ao Fim do Sofrimento, você ajuda a fortalecer mais um pouco esse caminho que leva a paz a todos os seres.
Então, reverência e qualquer outro ritual budista é importante, desde que haja intenção benéfica ali. Basta de escrever!