O equilíbrio entre a fé e a investigação no Budismo
Você não deve ter uma fé cega no que diz o Buda, você deve questionar o que ele diz colocando seus ensinamentos em prática. Entretanto, você só disporá do seu tempo para questioná-lo se você achar que vale a pena, logo, há de que se ter uma certa fé de que o que o Buda diz é válido, caso contrário você sequer submeteria isso à prova. Portanto, para haver a prática, há fé - só que essa fé não é cega e fundamentalista, mas analítica e fundamentada.
Muitas pessoas se sentem atraídas pelo Budismo porque ele não exige fé cega, mas pede que seus seguidores o questionem para concluírem se seus ensinamentos são válidos. Entretanto, costuma-se ressaltar que para a prática budista a fé em Buda é muito importante. Afinal, só vamos dispor do nosso tempo para investigar o Budismo se tivermos fé nele. Paradoxal? Vamos entender melhor.
Inicialmente, o Buda sequer anunciou alguma vez em sua vida: "Estou criando o Budismo! Sigam-me e preguem essa nova religião!", ele nunca teve a intenção de criar uma religião e muito menos que acreditassem nele sem questioná-lo. Ele apenas purificou sua mente, se libertou de suas opiniões e, assim, viu as coisas como elas na verdade são. Tendo feito isso, ele quis dizer aos outros como poderiam fazer a mesma coisa por eles mesmos - é como um amigo que, tendo conseguido fazer uma comida muito boa com uma receita, deseja compartilhá-la com você para que você possa cozinhar o alimento por si mesmo.
Sem usar o termo religião, Buda chamava seus ensinamentos de "Dharma-Vinaya", isso é, "Doutrina e Disciplina". Logo, o Buda apenas propôs que aplicássemos um certo conjunto de regras práticas e pudéssemos ver por nós mesmos o resultado, e não que seguíssemos essas disciplinas às cegas, sem refletir sobre. Afinal, um dos fatores mais importantes que alguém deve desenvolver para alcançar Nirvana é "Dharma-Vicaya", que significa "Investigação da Doutrina", ou seja, Buda ofereceu várias práticas disciplinares e depois nos pediu que as investigássemos; da mesma forma que um amigo que te propõe uma receita poderia te dizer: "Tente fazer, e você verá por si mesmo como isso ficará bom!".
Entretanto, você só tentará fazer a receita se você confiar em seu amigo até certo nível, não é? Se alguém que te enganou uma vez te propor uma receita culinária, provavelmente você não irá perder tempo tentando fazê-la, só fará a receita proposta por alguém em quem você confie, correto? Pois é nesse sentido que no Budismo dizemos que devemos ter uma certa fé em Buda. Não é uma fé cega, mas uma sensação de que Buda viu algo que vale a pena e, portanto, que vale a pena dispor do seu tempo para examinar o que ele propôs. Afinal, se você ouvisse o ensinamento de Buda e pensasse que isso não deveria levar a nada, você nem tentaria praticá-lo. Então, para começar, é necessário ter um pouco de fé em Buda. Mas que fé é essa?
Na verdade, essa fé surge justamente da investigação, assim como a investigação do Dharma começa com a fé. Veja como o Buda incentiva que o investiguem no Vimamsaka Sutta:
[Buda]: “Monges, um monge que é um investigador [...] deveria fazer uma investigação do Venerável (o Buda) para descobrir se ele é perfeitamente iluminado ou não.”
É muito interessante que o Buda quase sempre se refere a si mesmo como Tathagata, um título para quem alcançou o Nirvana (na verdade é um título complicado que será melhor explicado em outra ocasião), mas, nesse Sutta, ele se intitula como Venerável, ou seja, ele estava chamando a si mesmo da mesma maneira com a qual ele se dirigia aos outros monges. Então, ele mudou sua linguagem para se colocar de igual a igual com seus seguidores e convidá-los a investiga-lo, a questionar se ele seria digno de ser chamado de Buda, de Tathagata.
Se, através das ações verbais e corporais dele nós percebemos que, provavelmente, ele compreendeu algo que conduz à Paz e Felicidade, só então começamos a desenvolver fé por ele, mas uma fé não-cega. Em virtude dessa fé fundamentada na observação vemos que vale a pena a examinar a Doutrina proposta e, ao fazê-lo, realizamos a iluminação por nós mesmos.
Portanto, um budista precisa de ter fé em Buda para começar a praticar o Budismo, mas ao mesmo tempo ele deve questionar essa religião. Só que o desenvolvimento dessas virtudes é cíclico: a fé surge do questionamento, e o questionamento surge com a fé. Questionamos o Buda e, ao ver que ele é um bom mestre, adquirimos fé nele. Com essa fé, ficamos inspirados a questionar o que ele ensina. A partir daí, nossa fé cresce e nossas investigações ficam mais profundas. Portanto, um budista segue um desenvolvimento cíclico e gradual:
[Buda]: "E como ocorre o treinamento gradual, a prática gradual, o progresso gradual? Aqui alguém que possui fé (num mestre) o visita; ao visitá-lo ele o homenageia; ao homenageá-lo, ele lhe dá ouvidos; ao dar ouvidos, ele ouve o Dharma; ao ouvir o Dharma, ele o memoriza e examina o significado dos ensinamentos que ele memorizou; ao examinar o significado, ele aceita esses ensinamentos com base na reflexão; ao obter a aceitação dos ensinamentos baseado na reflexão, a aspiração brota; ao brotar a aspiração, ele aplica a vontade; ao aplicar a vontade, ele examina cuidadosamente, ao examinar cuidadosamente, ele se esforça; com esforço decidido, ele realiza com o corpo a verdade suprema, vendo-a e penetrando-a com sabedoria." - (retirado de Kitagiri Sutta - acessoaoinsight)
Veja como o Buda indicou como deveria ser a nossa prática. Primeiro, adquirimos fé num mestre por tê-lo investigado e, assim, vamos até ele e o homenageamos - isso é importante, porque reduz o nosso Ego e, assim, podemos ouvir o mestre com uma mente aberta, não arrogante. Tendo ouvido a doutrina proposta por ele, a memorizamos e a examinamos por meio das nossas experiências - mas só nos dispomos a examiná-la porque acreditamos, sem fundamentalismo e fé cega, que o mestre é sábio. Depois, só aceitamos tal ensinamento se concluirmos que ele, de fato, orienta ao bem, à felicidade e à paz com base na reflexão proveniente da investigação constante, não com base na fé - a fé foi importante para a investigação surgir e se manter, mas não é através dela que chegamos a conclusões.
Então, quando você ouvir a palavra fé no Budismo, não pense que acreditamos no Buda acima de qualquer coisa. Muito pelo contrário: nós o questionamos. Entretanto, para questioná-lo, precisamos primeiro acreditar, em um certo nível, que ele ensina algo de valor - só então começaremos a colocar os ensinamentos em prática. Penetrando-os, poderemos ver por nós mesmos o que o Buda disse.
Assim, para que a prática funcione, é necessário balancear a fé e o questionamento. Não adiantaria você questionar o Buda a todo o momento com desconfiança, pensando "Humm... Acho que aqui o Buda falou besteira...", sem a fé nele, nossa prática pode ficar tão confusa como estaria sem a orientação de alguém.
Portanto, tendo o Buda nos proposto uma receita, precisamos primeiro questioná-lo e, se vermos que ele é digno de confiança, só então teremos mais coragem e confiança para experimentar realizar os procedimentos passados. Mantendo a prática com fé e investigação na doutrina, assim como outras virtudes, poderemos, enfim, terminar a receita para a paz interior por nós mesmos.