Segue abaixo um texto de Ajahn Thanissaro, monge budista theravada discípulo de Ajahn Lee, um dos mestres mais renomados que ajudaram a reviver a Tradição das Florestas na Tailândia. Neste texto, Thanissaro Bhikkhu, conhecido por ter traduzido muitos Suttas do páli para o inglês, aborda a influência que a nossa vida cotidiana tem em nossa meditação. Se sua meditação não está avançando, o problema pode estar na forma como você tem agido fora da almofada para meditar! Não adianta estimular a mente incorretamente durante o dia e tentar tranquiliza-la somente no momento de samadhi. Portanto, para saber como adaptar sua vida à meditação, e não apenas a meditação a sua vida, leia com carinho as palavras abaixo.
Cinco coisas para manter em mente
por Thanissaro Bhikkhu - Julho de 2003Esse texto foi retirado e traduzido do site Dhamma Talks.
Muitas vezes nós pensamos que apenas por acrescentar a meditação às nossas vidas, os efeitos dela permearão todos nossos momentos sem a necessidade de que façamos alguma outra coisa. Simplesmente adicione a meditação à “mistura” da sua vida e isso mudará todos os outros ingredientes: é assim que gostaríamos que fosse, mas, de fato, isso não funciona dessa maneira. Você tem de refazer a sua vida para torna-la um bom espaço pelo qual a meditação possa fluir, porque existem algumas atividades e alguns estados mentais que resistem em receber qualquer influência da meditação. Esse é o motivo pelo qual, quando você está meditando, você também tem de olhar para a forma como você vive a sua vida e as atividades do seu dia a dia. Veja se você está criando um ambiente que conduza a uma meditação que possa florescer e se expandir. Caso contrário, a meditação apenas ficará comprimida entre as fendas de rochas aqui e ali, e nunca conseguirá permear coisa alguma no final das contas.
No cânone, há um ensinamento baseado em cinco princípios que um novo monge deveria manter em mente. Esses princípios se aplicam não somente a monges iniciantes, mas também para qualquer um que deseje viver uma vida em que a meditação possa fluir e permear todas as coisas.
O primeiro princípio é virtude. Esteja certo de que você está se mantendo fiel aos seus preceitos. No caso dos monges, é claro, isso se refere ao Patimokka1. No caso de pessoas leigas (não-monges), isso se refere aos cinco preceitos e, ocasionalmente, aos oito2. Quando você está mantendo os preceitos você está preservando princípios seguros para sua vida. O Buda descreveu observar os preceitos como um presente: um presente tanto para você mesmo quanto para as pessoas a sua volta. Você oferece proteção à vida das outras pessoas, a suas propriedades e a seus conhecimentos da verdade. Você as protege da sua embriaguez e as protege do seu engajamento em sexo ilícito. E quando esses princípios são transformados em preceitos – em outras palavras, uma promessa a você mesmo que você cumprirá em todas as circunstâncias – o Buda aponta que você está dando proteção e segurança ilimitadas aos outros seres sencientes, e você tem uma quota naquela segurança que protege você mesmo.
1 O Código de Disciplina Monástica, consistindo de 227 regras para os monges (bhikkhus) e de 311 para as monjas (bhikkhunis).
2 Durante retiros de meditação, além dos 5 preceitos tomados por um leigo, os praticantes também seguem mais 3 preceitos, totalizando os 8 preceitos seguidos não só durante retiros mas também no dia de observância do Uposatha, quando a comunidade monástica e leiga se reúne para prática intensiva. Dessa forma, as regras seguidas são: abstenção de matar seres vivos; abstenção de tomar o que não for dado; abstenção de qualquer ato não-casto (não apenas atos sexuais impróprios); abstenção da linguagem incorreta; abstenção do álcool e outros embriagantes; abstenção de comer após o meio-dia; abstenção de qualquer entretenimento como música, dança, uso de perfumes, ornamentos e adornos; abstenção de deitar em leitos elevados e luxuosos - num retiro, os praticantes dormem em camas bem simples.
Assim, por um lado, os preceitos criam um ambiente onde há mais proteção – e onde há mais proteção é mais fácil meditar. Por outro lado, os preceitos adotam uma atitude de generosidade. Você percebe que para sua própria felicidade, você tem de doar. Quando você tem essa atitude fica fácil meditar, porque, frequentemente, muitas pessoas vêm à meditação com o questionamento “O que eu posso conseguir disso?”. Mas se você está acostumado a ser generoso e conhece os bons resultados provenientes da bondade, você estará mais inclinado a perguntar “O que eu posso oferecer à meditação? O que precisa ser oferecido para que os bons resultados venham?”, com essa atitude você estará mais disposto a oferecer o seu tempo e a sua energia de uma maneira que você poderia não ter estado antes.
O segundo princípio para criar um bom ambiente para a meditação na sua vida é a contenção dos sentidos. Em outras palavras, você não é apenas cuidadoso com o que vem a sua mente, mas também o é com o que vem para dentro em termos de coisas que você vê, as coisas que você ouve, cheira, degusta, toca e pensa1. Tenha cuidado para não focar em coisas que darão surgimento à ganância, à raiva ou à delusão. Se você for descuidado com o que você vê ou ouve, será muito difícil para você estar alerta aos seus pensamentos, porque eles são muito mais sutis. Isso não significa que você sairá por aí com panos nos olhos ou com tampões nos ouvidos, mas simplesmente que você será habilidoso na maneira com que você olhará para as coisas, habilidoso na forma como você as ouvirá. Se você sabe que alguma coisa tende a provocar luxúria ou raiva, aprenda a olhar para isso de uma forma que não estimule luxúria, mas que contra-ataque a luxúria, que contra-ataque a raiva. Em outras palavras, se alguma coisa parece atrativa, você olha para o seu lado aversivo. Se alguma coisa parece aversiva, você olha para o seu lado atrativo. Como Ajahn Lee dizia, seja uma pessoa com dois olhos, não apenas um.
1 Aqui percebe-se a referência aos objetos que são experimentados através das 6 bases internas dos sentidos declaradas por Buda: olho, ouvido, nariz, língua, corpo e mente.
Esse é o motivo pelo qual entoamos aquela passagem para a contemplação do corpo1. Ela não diz para não olharmos para o corpo, mas fala para olharmos mais cuidadosamente para o corpo. Olhe para as partes que não são atrativas para balancear com o ponto de vista que simplesmente foca nos poucos detalhes atrativos aqui e ali tendendo a ignorar todo o resto para dar surgimento à cobiça. Afinal de contas, não é o corpo que é o produtor da luxúria – a mente é quem produz luxúria. Muitas vezes a mente deseja sentir isso e, assim, ela sai procurando por alguma coisa para estimulá-la, se agarrando a qualquer detalhe pequeno que ela possa encontrar, mesmo quando esses detalhes estão envoltos por todo tipo de coisas incertas ou obscuras.
1 Há várias passagens no Cânone que encorajam a contemplação cuidadosa do corpo. Você pode conferir no site acessoaoinsight algumas passagens como Dvattimsakara - as 32 Partes, em que o corpo é dividido em 32 partes as quais devemos contemplar e nos conscientizar, assim como a passagem de Contemplação do Corpo no Satipatthana Sutta.
Logo, mantenha-se atento em o que vai para fora da mente e em o que vem para dentro. Para as pessoas leigas, isso significa ter cuidado com os amigos com quem elas se associam, as revistas que elas leem, os programas de TV que elas assistem, a música que elas escutam. Seja muito cuidadoso com a maneira com a qual você olha para essas coisas. Depois de um tempo você descobrirá que você não precisa se restringir demais à medida que você for aprendendo a ver as coisas mais cuidadosamente, de maneira mais completa, visto que você estará vendo ambos os lados de o que quer que seja que geralmente parecia apenas atrativo ou apenas aversivo.
Isso requer um pouco de esforço. Você tem de ser mais energético para observar de que maneira você olha e ouve. Mas o benefício é que a mente é colocada em uma forma muito melhor para meditar porque você não a estará enchendo com todos os tipos de sujeira, veneno ou alimento estragado que poderiam danificá-la ou enfraquece-la – isso é se manter no caminho. Logo, muitas vezes quando você se senta para meditar, se você tiver sido descuidado sobre o que esteve entrando e saindo de sua mente, você perceberá que esse processo será como limpar um barracão depois de um ano de negligência. Há tanto lixo lá que você gasta quase a hora inteira (reservada à meditação) limpando-a, e logo você percebe que só possui cinco minutos de silêncio verdadeiro bem no final. Assim, mantenha a mente limpa desde o início, por todo o tempo. Não deixe qualquer sujeira na porta ou nas janelas. Dessa maneira você descobrirá que você tem um lugar muito mais calmo para se sentar e se estabelecer quando você criar sua “casa para meditação”.
O terceiro princípio para criar um ambiente agradável para a meditação na sua vida é moderação em sua conversação. Na primeira vez em que eu fui ficar com Ajahn Fuang1 ele disse que a lição número um na meditação é manter o controle da sua boca. Em outras palavras, antes de você dizer qualquer coisa, pergunte a si mesmo: “Isso é necessário? Isso é benéfico? Existe um bom motivo para eu dizer isso?”, se existe, então vá em frente e fale. Se não, então apenas mantenha-se quieto. Como ele dizia, se você não pode controlar a sua boca não haverá jeito de você conseguir controlar a sua mente. E quando você mantiver esse hábito de questionar a si mesmo essa pergunta, você descobrirá que poucas conversas são realmente necessárias. Se você estiver no trabalho e precisar conversar com os seus empregados, ok, isso conta como necessário. Se você precisa conversar com um colega de trabalho para criar uma boa atmosfera no escritório, isso também conta como um diálogo necessário. Mas, frequentemente, conversas sociais vão além disso. Você começa a sentir-se carente, perde o controle da sua boca e então aquilo se transforma numa conversa á toa e insolente que não é apenas uma perda de energia, mas também uma fonte de perigo. Geralmente, as coisas que as pessoas dizem que causam mais dano ocorrem quando elas estão apenas permitindo que qualquer coisa que venha em suas mentes saia pelas suas bocas sem qualquer moderação.
1 Também foi discípulo de Ajahn Lee, tendo se tornado mestre de Ajahn Thanissaro devido ao falecimento do primeiro.
Agora se observar esse princípio fizer você receber uma reputação como uma pessoa quieta, tudo bem. Você perceberá que se você for mais cuidadoso com a maneira com a qual você utiliza suas palavras, elas serão vistas com mais valor. E, ao mesmo tempo, você estará criando uma atmosfera melhor a sua mente. Afinal, se você passar o dia todo conversando constantemente, como você irá parar a conversa em sua mente quando se sentar para meditar? Mas se você desenvolver esse hábito de observar a sua boca, esse mesmo hábito virá a ser aplicado também na meditação. Todas aquelas bocas em sua cabeça começarão a silenciar.
O quarto princípio para criar um bom ambiente para a meditação em sua vida é, para os monges, frequentar locais desertos, se distanciar da sociedade, encontrar um local silencioso para estar consigo mesmo - assim você pode obter um senso de perspectiva da sua vida, um senso de perspectiva da sua mente, visto que o que estiver ocorrendo em sua mente se destacará num relevo mais ousado. Esse princípio se aplica a pessoas leigas também. Tente encontrar tanta solidão quanto você conseguir. Isso é bom para você. Quando as pessoas têm problema para viver em solidão, isso mostra que existem muitos negócios que não foram terminados dentro delas.
Então, faça um pequeno local solitário em sua casa. Desligue a TV, apague as luzes, permita a você mesmo estar sozinho sem muitas distrações. Diga a todos que você precisa ter um pouco de tempo sozinho num local harmonioso. Quando você fizer isso, você descobrirá que coisas que costumavam a estar nas profundezas de sua mente virão à superfície, e é somente quando elas vêm à superfície que você poderá se conciliar com elas. Quando você estiver sozinho desta maneira sem muitos estímulos externos, é natural que a mente tenderá a ficar com a respiração mais facilmente. Haverá muitos diálogos mentais no começo, mas depois de um tempo você se entediará deles. Você apenas preferirá ficar em silêncio. Ao mesmo tempo, você ficará fora da influência dos pensamentos e opiniões de todo mundo. Você pergunta a si mesmo “Em que você realmente acredita? Quais são as suas opiniões? O que é importante para você quando você não está submetido às opiniões dos outros?”.
Isso nos leva ao quinto princípio, que é desenvolver entendimento correto. Entendimento correto tem dois níveis. Primeiro, há fé no princípio de Karma1, no qual o que você realmente faz tem resultado – e de fato é você quem está agindo. Não é uma força externa agindo através de você, não são as estrelas, Deus ou o que quer que seja. Você está tomando as decisões e você tem a habilidade de torna-las hábeis ou não, dependendo da sua intenção. É importante acreditar nesse princípio porque isso dá mais poder a sua vida. É uma crença fortalecedora – mas ela também envolve responsabilidades. Esse é o motivo pelo qual você tem de ser cuidadoso no que você faz, porque você não pode ser imprudente. Quando você é atencioso às suas ações, fica fácil ser cuidadoso com sua mente quando for o momento de meditar.
1 Karma significa Ação Intencional, simbolizando as marcas benéficas ou maléficas que você lança no mundo e na sua mente dependendo da intenção com que você realiza suas ações. Tal doutrina estabelece que nossas ações são limitadas por Karmas passados, mas que temos opções suficientes para purificar nosso Karma presente ou para corrompe-lo - logo, não há nem determinismo, nem total livre-arbítrio, há influências passadas que limitam um leque de opções que podemos escolher no momento presente.
O segundo nível de entendimento correto, o nível transcendente, consiste em ver as coisas com base nas Quatro Nobres Verdades1: estresse e sofrimento, a causa do estresse e sofrimento, a cessação do estresse e sofrimento, e o caminho de prática para essa cessação. Apenas olhe para sua experiência, para toda a extensão que ela alcançar, e em vez de dividi-la na maneira usual como eu e não eu, apenas olhe para compreender: Onde há sofrimento? Onde há estresse? O que vem junto com isso? O que você está fazendo que esteja dando nascimento a este estresse? Você consegue se desapegar dessa atividade? E quais qualidades você necessita desenvolver? De quais coisas você precisa se desapegar a fim de largar a sede2, a ignorância3 subjacente ao estresse? Quando você larga o desejo, você consegue estar consciente do que está acontecendo? Muito frequentemente quando nós soltamos um desejo nós acabamos por simplesmente nos agarrarmos a outros desejos. Você consegue tornar você mesmo mais e mais consciente desse espaço entre esses desejos para expandi-lo? Como é ter uma mente sem apegos?
1 A verdade de Dukkha, a verdade da origem de Dukkha, a verdade da cessação de Dukkha, a verdade do caminho que conduz a cessação de Dukkha. Nesse texto, Thanissaro Bhikkhu traduz Dukkha como "estresse".
2 Sede, Tanha em páli, é a condição declarada na 2ª Nobre Verdade pela qual Dukkha vem a surgir.
3 Ignorância, Avijja em páli, é a condição pela qual Tanha surge.
De acordo com o Buda é importante ver as coisas dessa maneira, porque se você se identificar com todas as coisas em termos de eu e meu, como você poderá entender qualquer coisa por o que ela realmente é? Se você se agarrar ao sofrimento como pertencente a você, como você conseguirá entender o sofrimento? Se você olhar para isso simplesmente como sofrimento sem colocar esse rótulo de "eu" nele, você poderá vê-lo por o que ele realmente é e assim poderá se desapegar dele. Se isso é o seu "eu", se você se apega à crença de que isso pertence ao seu "eu", você não consegue largar isso. Mas olhar para as coisas com base nas Quatro Nobres Verdades te permite solucionar todo o problema acerca do sofrimento.
Logo, comece a olhar para toda a sua vida a partir desse ângulo. Em vez de culpar as pessoas a sua volta pelo seu sofrimento, olhe para o que você está fazendo que esteja criando sofrimento, que esteja contribuindo para aquele sofrimento, e foque em negociar com isso primeiro. Quando você desenvolve essa atitude em sua vida cotidiana, fica muito mais fácil aplicar isso na meditação. Você cria o ambiente onde cada vez mais faz sentido se manter no Nobre Caminho.
Assim, estes são os fatores que criam um ambiente bom para a meditação quer você seja um monge iniciante vivendo aqui no monastério quer você seja uma pessoa leiga vivendo fora do monastério: manter os preceitos, manter a contenção dos sentidos, praticar a moderação através da sua conversação, criar lugares quietos e isolados para você mesmo, e desenvolver entendimento correto. Quando você segue esses princípios, eles criam um ambiente mais conducente para permitir a concentração acontecer, assim como criam um ambiente mais receptivo que deixa os resultados da concentração permearem todas as direções. Desta forma a sua prática, em vez de ser forçada a atravessar as rachaduras de um ambiente hostil e estranho, terá espaço para crescer e transformar tudo ao seu redor.